Ramadan e Carnaval: Espiritualidade e Celebração no Brasil Plural
por Francirosy Campos Barbosa
Quando as escolas de samba se reúnem para o desfile, os muçulmanos no Brasil seguem para as mesquitas para a primeira oração do Tarawih (é uma oração especial realizada durante o mês do Ramadan. Trata-se de uma oração voluntária (altamente recomendada) que ocorre após a oração do Isha (a última oração obrigatória do dia). Nessa noite, tem início o mês do Ramadan, um período de jejum e intensa prática religiosa por 29 ou 30 dias, a depender do calendário lunar.
O Brasil é frequentemente associado a grandes festividades, como o Carnaval, e a paixões nacionais, como o futebol. Esses elementos culturais moldam a identidade do país e projetam uma imagem de um povo vibrante, festivo e socialmente conectado. No entanto, dentro desse caldeirão cultural, há espaços de vivência e religiosidade que desafiam estereótipos e ampliam a compreensão da diversidade brasileira. O Islam, presente no Brasil desde o período colonial, é um exemplo de como a pluralidade religiosa se entrelaça com as tradições populares e com as dinâmicas sociais do país.
A ideia do Brasil como um país do Carnaval e do futebol remonta à construção de uma identidade nacional baseada na celebração e na performance pública, o antropólogo Roberto da Matta já escreveu sobre isso. O Carnaval, com sua explosão de cores, ritmos e narrativas, se tornou um espaço de criatividade e transgressão temporária das normas sociais. O futebol, por sua vez, é um fenômeno que mobiliza multidões e estabelece vínculos emocionais e comunitários profundos. Ambos são fenômenos que dialogam com aspectos históricos e políticos do Brasil, refletindo desigualdades, disputas e a capacidade de ressignificação dos sujeitos envolvidos.
Diante desse cenário, a presença do Islam no Brasil é muitas vezes invisibilizada ou reduzida a estereótipos exógenos. Contudo, a história do Islam no Brasil é antiga e complexa. Desde os muçulmanos africanos trazidos como escravizados – que protagonizaram a Revolta dos Malês em 1835 – até as atuais comunidades islâmicas formadas por migrantes e brasileiros convertidos, há uma trajetória de resistência e adaptação que desafia a homogeneidade imaginada do país. Para saber mais, assista ao meu documentário: Allah, Oxalá: Na Trilha Malê.
A experiência islâmica no Brasil se dá em meio a um contexto predominantemente cristão e marcado por uma religiosidade que muitas vezes se manifesta de forma pública e festiva. A questão do jejum no mês do Ramadan, por exemplo, contrasta com a lógica do excesso e da celebração do Carnaval. Enquanto o Carnaval simboliza a liberação dos sentidos e dos corpos, o Ramadan é um período de contenção, disciplina e introspecção.
Essa oposição, no entanto, não significa um choque de culturas, mas sim uma coexistência de formas diversas de viver a espiritualidade.
O jejum do Ramadan, conhecido como sawm, é uma das cinco obrigações fundamentais do Islam. Durante todo o mês, os muçulmanos se abstêm de comida, bebida e outras atividades, como relações íntimas, do nascer ao pôr do sol. Esse período de restrição é acompanhado de orações, recitação do Alcorão e reflexão espiritual, promovendo um fortalecimento da fé e da consciência sobre a importância da solidariedade e da generosidade. O jejum também carrega um significado social profundo, ao aproximar os fiéis da experiência dos mais necessitados e incentivar o autocontrole e a empatia.
Ser brasileiro e praticar o jejum do Ramadan pode ser um desafio em um ambiente onde a comida e a celebração são centrais na vida social. Muitos muçulmanos no Brasil encontram estratégias para conciliar sua fé com as interações cotidianas, como evitar reuniões gastronômicas durante o período de jejum ou encontrar apoio em comunidades islâmicas locais. Além disso, a adaptação ao jejum dentro de uma rotina de trabalho e estudos exige planejamento e resiliência, especialmente em um país onde a prática não é amplamente compreendida.
A Psicologia Islâmica que é um campo de conhecimento que integra princípios da fé islâmica com a psicologia, nos ajuda a compreender o funcionamento da mente e do comportamento humano a partir de uma perspectiva que enfatiza a conexão entre corpo, mente e alma. Considerando a espiritualidade como um elemento central do bem-estar, essa abordagem analisa como práticas religiosas, como o jejum, a oração e a meditação, influenciam a saúde mental e emocional dos fiéis. Além de fortalecer o autocontrole, a resiliência e o equilíbrio emocional, essas práticas promovem empatia e solidariedade, reforçando o sentimento de pertencimento dentro da comunidade muçulmana.
No Brasil, onde essa perspectiva ainda é pouco explorada, muçulmanos que praticam o jejum do Ramadan podem enfrentar desafios específicos, especialmente devido à cultura alimentar e ao papel central da sociabilidade nas interações diárias. Nesse contexto, a Psicologia Islâmica pode contribuir com ferramentas para auxiliar na adaptação desses fiéis, incentivando a criação de espaços de acolhimento e suporte psicológico baseados em princípios islâmicos. Essas iniciativas podem facilitar a integração social dos muçulmanos no país sem que precisem abrir mão de sua identidade religiosa, promovendo um diálogo entre fé e bem-estar emocional.
Neste mês, em que a visibilidade do Islam se torna ainda mais necessária, todas e todos são convidados a conhecer as mesquitas espalhadas pelo país, espaços de acolhimento, aprendizado e espiritualidade. Visitar uma mesquita é uma oportunidade para ampliar horizontes, desfazer preconceitos e compreender mais profundamente a riqueza da fé muçulmana no Brasil. A abertura ao diálogo e à experiência do outro fortalece os laços de uma sociedade verdadeiramente plural, onde todas as religiões e culturas possam coexistir com respeito e reconhecimento mútuo.
Aos muçulmanos no Brasil: Ramadan Mubarak!
Francirosy Campos Barbosa (FFCLRP/USP)
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