Racismo Epistêmico e Futebol

Racismo persiste e, por vezes, se camufla em diferentes espaços do esporte

por Walter Moreira Dias

Apesar do avanço e da difusão de pautas antirracistas no século XXI, não é raro vemos notícias relatando episódios de racismo no futebol. Seja em arquibancadas de clubes europeus ou sulamericanos, de forma mais coletiva e homogênea em muitos casos, e por vezes até torcedores brasileiros de forma mais individualizada nos anos mais recentes. Neste tema, vale destacar o importante trabalho do Observatório da Discriminação Racial do Futebol no acompanhamento e denúncia de situações de racismo neste esporte.

O sentimento de asco ao racismo escancarado, por parte dos torcedores brasileiros, tem se cristalizado, de maneira geral, nos últimos anos. Não é mais tolerável haver xingamentos, abertamente ao menos, de cunho racista nas arquibancadas. Apesar de ainda se verificar a existência de alguns poucos imbecis brasileiros imitando macacos ou coisas do gênero para se atingir torcedores e times adversários. Nestes casos, há uma veloz identificação pelas redes sociais e pelas autoridades para que se tomem medidas de forma exemplar.

Vale a menção que palavras como “mulambo” ainda permanecem usuais nas arquibancadas, nos cânticos de torcidas organizadas e nas conversas descontraídas entre amigos como forma de menosprezar torcedores do Flamengo. Quando, na verdade, revela uma ofensa de base racista pois se remete à época da escravidão, com referência à forma que escravizados com roupas maltrapilhas eram chamados. Mas ainda é um termo utilizado sem a devida reflexão e conhecimento por muitos. Isto para não entrar no histórico do termo “urubu”, que posteriormente foi adotado pela torcida rubro-negra, buscando-se reverter a condição racista do xingamento antes escutado dos rivais.

Mas, de fato, o xingamento aberto e escrachado tem tomado forma de ojeriza nas arquibancadas brasileiras. Porém, o racismo continua se manifestando em outras vertentes do jogo no país. Para discutir uma destas vertentes convém dialogar aqui sobre o conceito de Racismo Epistêmico.

Partindo das grandes contribuições de Sueli Carneiro (por ela chamado de Epistemicídio) e Renato Noguera, podemos defini-lo como uma subalternização do conhecimento ou menosprezo à inteligência e racionalidade de pessoas negras. Em resumo, duvida-se da capacidade cognitiva de negros.

Buscando ver isto na prática, torcedores brasileiros, no geral, que se orgulham de não tolerar racismo em campo, que se indignam ao ver as atrocidades sofridas por Vini Jr e outros brasileiros na Europa, que se revoltam com ofensas de torcidas argentinas em jogos de Libertadores, não são capazes de enxergar o racismo epistêmico em nosso solo.

Quantos treinadores negros temos na primeira e segunda divisão do futebol brasileiro? A paciência sempre é menor com negros à frente da equipe. Vale a pena a pesquisa sobre a trajetória e dificuldades enfrentadas na carreira de Lula Pereira, Cristóvão Borges, Jayme de Almeida, Andrade, Roger Machado…

E os Presidentes de clube negros? Diretores negros? Conselheiros negros?

Quais espaços lhes são ofertados e têm suas contribuições valorizadas para além das quatro linhas do campo?

Existem nos clubes em que proporção?

Basta assistir qualquer reunião do Conselho Deliberativo de qualquer clube para se atestar esta situação. Quais políticas os clubes debatem atualmente para se atacar esta subrepresentatividade em seus quadros?

Além de todo este cenário desigual ainda tivemos que assistir a lamentável declaração do Alfredo Almeida, diretor das categorias de base do Flamengo, no mês passado:

“Aquilo que o atleta brasileiro tem, provavelmente não há em mais nenhuma parte do mundo. Tem a ver com o dom, a magia, a irreverência, a bola fazer parte do corpo, a relação com a bola. Isso não existe em quase parte nenhuma do mundo. Depois, existem outras zonas do globo onde há outras valências. Como, por exemplo, a África tem valências físicas como quase nenhuma parte do mundo. Se quisermos ir para a parte mental, temos que ir a outras zonas da Europa, do globo.” (Coletiva de imprensa, de 14/07/2025)

A absurda associação da racionalidade e da força física às etnias remonta ao racismo “científico” do século XIX de Georges Cuvier (1769-1832) e Arthur de Gobineau (1816-1882). Este último, inclusive, em visita ao Brasil em 1869, chegou a afirmar que o país se degeneraria justamente pela miscigenação de etnias/raças diferentes. Se misturaria as qualidades e características específicas de cada raça levando todos à doenças e à morte.

A história mostrou que Cuvier e Gobineau promoveram o racismo.

Clubes, dirigentes e torcedores ainda precisam conhecer melhor o passado e interpretar o presente corretamente para que não mais o promovam.

Walter Moreira Dias é doutorando em Educação (UFF), mestre em Sociologia e Antropologia (UFRJ) e graduado em História (UFF). Professor da SEDUC-Maricá e SEEDUC-RJ e autor de “Futebol é Política” (Dialética, 2024)

LATERAL ESQUERDA – Parceria dos professores e pesquisadores Henrique Alvarez (Doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ) e Walter Moreira Dias (Doutorando em Educação na UFF) para tratar da interface entre futebol e política

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Last Update: 11/08/2025