Quando eu era jovem, participei de muitas excursões para programas de auditório. Os ônibus de caravana paravam nas escolas das periferias e levavam as meninas para bater palmas, segurar pompom e repetir bordões com entusiasmo cronometrado. “Quem quer dinheiro?”, “Gracinha!”, “Pegue seu banquinho e saia de mansinho”. O dia passava entre luzes, gritos e um pão com queijo embrulhado em guardanapos. Durante as gravações, a alegria era obrigatória. Fora do ar, a simpatia se dissolvia no primeiro intervalo. Celebridades que sorriam para o povo na frente da câmera viravam o rosto assim que a lente piscava. O que me faz lembrar da canção do Capital Inicial:

“O que você faz quando ninguém te vê fazendo? / O que você queria fazer se ninguém pudesse te ver?”

Pois bem. E se essa pergunta não fosse dirigida a um apresentador de TV ou a um artista, mas a um agente do Estado com uma pistola no coldre e uma câmera no peito? E se o botão de desligar a imagem estivesse ao alcance de quem decide, em segundos, entre a vida e a morte? O que você faria se pudesse escolher exatamente o momento de cortar a cena?

É essa a pergunta que paira quando o Supremo Tribunal Federal homologa um acordo que amplia o uso das câmeras corporais, mas reconhece — ainda que em nome do equilíbrio — a possibilidade de desligamento em determinadas condições. Não estamos mais discutindo se as câmeras devem existir, mas quem pode decidir quando elas se calam.

E aqui entra a contradição coreografada, com roteiro técnico e produção institucional. Porque quando a Defensoria Pública questionou as operações letais em favelas na ADPF 635, o país tremeu. Gritaram que o Supremo estava “tolhendo a polícia”, que era “ativismo”, “ingerência”, “ideologia de gabinete”. Agora, quando se trata de regular o uso de um instrumento que pode proteger vidas e responsabilizar abusos, o tom muda. O acordo é elogiado como equilíbrio. Mas equilíbrio pra quem? Mas onde estão os indignados de sempre? Onde estão os colunistas preocupados com “ativismo judicial”? Onde estão os editoriais que gritam contra a usurpação do Executivo?

Porque quando o STF determinou limites para operações policiais nas favelas, como na emblemática ADPF 635, o escândalo foi imediato. Disseram que o Supremo estava “destruindo a autoridade policial”, “abrindo as pernas para o crime”, “colocando os direitos humanos acima do cidadão de bem”. A Corte foi acusada de tudo: ideológica, petista, leniente, descolada da realidade. Bastou proteger os corpos negros e periféricos para que a toga virasse alvo.

Agora, quando o mesmo STF chancela um acordo que regula o uso das câmeras — mas abre brechas para seu desligamento técnico, operacional, circunstancial — o silêncio é quase elogio. Nenhuma capa vermelha. Nenhuma voz acusando a Corte de “interferir demais”. Por quê?
A verdade é que a câmera corporal não é um fim em si mesma. Ela só tem valor se estiver ligada, ativa, acessível, inviolável. Uma câmera que pode ser desligada no auge do confronto não é instrumento de transparência, é biombo. É a maquiagem digital para um Estado que aprendeu a parecer democrático enquanto silencia seus alvos.

É preciso reconhecer que o Supremo Tribunal Federal está, sim, cumprindo seu papel. Ao homologar o acordo e estabelecer parâmetros técnicos e operacionais mais rigorosos para o uso das câmeras, a Corte avança na direção de uma política pública mais transparente e controlável. O problema não é o STF — que, aliás, tem sido uma das poucas instituições a tensionar o debate sobre segurança pública com seriedade jurídica e compromisso democrático. O problema é uma sociedade que seleciona suas críticas com base em quem é beneficiado pela decisão. Quando o Supremo protege direitos fundamentais de pessoas negras, pobres e periféricas, é acusado de ativismo. Quando reforça protocolos para o uso da força estatal, é elogiado como garantidor da ordem. Esse texto não é sobre a Corte. É sobre o espelho torto que usamos para enxergar justiça, e o quanto esse reflexo muda dependendo do lado da cidade onde mora o corpo que será enquadrado.

Não é preciso ser radical para reconhecer que há diferenças entre espetáculo televisivo e atuação policial. Mas é preciso ser honesta para admitir que, em ambos os casos, quem controla a câmera tem o domínio da narrativa.

Então eu volto à pergunta: O que você faria se pudesse decidir quando a câmera desliga?

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Last Update: 14/05/2025