Quem precisa de justiça climática no Brasil? é a pergunta norteadora da publicação realizada por integrantes do Grupo de Trabalho de Gênero do Observatório do Clima, com o objetivo de promover o diálogo e a ação climática a partir da perspectiva de gênero e suas intersecções. Enquanto membro do GT e com uma atuação no setor da moda, aproveito para trazer a discussão para essa indústria. Afinal, quem precisa de justiça climática na moda?
Como é de se esperar, o contexto da luta por justiça climática na moda espelha os problemas estruturais que encontramos na sociedade, como as desigualdades de gênero, racial e econômica em territórios vulneráveis. A Ministra Marina Silva, no prefácio da publicação, aponta com clareza o que está posto: o maior sofrimento pelas mudanças climáticas já em andamento recai sobre os que menos consomem os recursos naturais do planeta e “essa é a dimensão humana da justiça climática que, na voz dos injustiçados, exige reparação e justiça.”
Nesse contexto, a justiça climática coloca a equidade e os direitos humanos no centro das ações, considerando as várias formas de desigualdade. Ao traçar esse cenário a partir de uma perspectiva interseccional na indústria da moda, desvelamos as estruturas de um setor que, apesar de alicerçado na mão de obra feminina, mantém estruturas rígidas de poder ancoradas no patriarcado capitalista, onde a dominação masculina e a estrutura de classe se fortalecem mutuamente. Ou seja, a estrutura capitalista, com sua ênfase na produção e no lucro, se beneficia e se mantém através das relações de poder patriarcais, que subjugam as mulheres e perpetuam a desigualdade de gênero.
Com isso dito, precisamos reconhecer que as mulheres enfrentam desafios únicos, devido ao seu gênero, que vão além dos abusos aos direitos humanos normalmente encontrados nessa cadeia produtiva (como aqueles relacionados à saúde e segurança do trabalho, trabalho em condições análogas à de escravo e infantil), ficando expostas a outros tipos de exploração como assédio e abuso sexual, maior propensão à violência física, psicológica, moral e sexual no ambiente de trabalho, o que as coloca em situação de maior insegurança. Sendo assim, as mulheres têm direitos específicos que precisam ser reconhecidos e protegidos.
Por sua vez, as desigualdades de gênero aumentam a vulnerabilidade aos impactos da crise climática, como indica o relatório Justiça climática feminista da ONU Mulheres. Por exemplo, o acesso desigual das mulheres aos recursos econômicos significa que, quando os padrões climáticos mudam, prejudicando a infraestrutura e os serviços públicos, elas têm menos condições de adaptar seus meios de subsistência, recuperar-se e reconstruir-se; no contexto de desastres climáticos, as mulheres geralmente têm responsabilidades ainda maiores de cuidados não remunerados nas famílias; uma vez que comunidades enfrentam mais dificuldades na obtenção de água, combustível e alimentos, as mulheres precisam lidar com demandas crescentes de saúde de integrantes da família; as mudanças climáticas estão provocando o aumento dos níveis de violência e discriminação contra mulheres e meninas.
Portanto, podemos dizer que na moda as trabalhadoras estão cada vez mais suscetíveis às consequências da crise climática, justamente porque têm meios limitados para se adaptar a estes desafios em função das dinâmicas da produção de vestuário. Como na costura, onde a demanda por uma enorme variedade de modelos, agilidade na produção e grandes volumes, por valores cada vez mais baixos, prioriza-se a força de trabalho periférica e abre-se espaço para a precarização do trabalho. Além disso, há uma disparidade salarial entre pessoas de diferentes raças, sendo as indígenas e negras pior remuneradas quando comparadas às brancas, como mostra o Mulheres na Confecção: Estudo sobre gênero e condições de trabalho na Indústria da Moda, de 2022.
No que diz respeito as comunidades periféricas, estas são desproporcionalmente afetadas pela crise do clima devido a uma combinação de fatores socioeconômicos e geográficos. São áreas que frequentemente sofrem com infraestrutura inadequada, habitações precárias e falta de acesso a serviços básicos, tornando-as mais vulneráveis a eventos climáticos extremos como enchentes, deslizamentos de terra e ondas de calor, e reforçando injustiças de gênero, raça, classe e território. Importante notar que 51,7% dos moradores de favelas são mulheres, e a maioria delas são negras, em um cenário em que a proporção de pessoas negras é de 72,9%, como informa o Censo de 2022 do IBGE.
Em relação ao trabalho do cuidado, as mudanças climáticas exacerbam as desigualdades em uma realidade em que as mulheres já assumem responsabilidades desproporcionais dedicadas a casa e a família. O trabalho de campo das minhas colegas do coletivo Mulheres do Polo evidencia que as costureiras informais, que atuam em domicílio trabalham, em média, 14 horas por dia na costura e dedicam cerca de 4 horas por dia ao trabalho doméstico e cuidado com a família, sem férias direitos à aposentadoria e a benefícios sociais, como auxílio-doença e maternidade – o trabalho de costura é predominantemente informal, precário e desvalorizado no Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco onde estão inseridas. O que reforça a necessidade da luta por trabalho digno para as costureiras: “uma classe profissional desvalorizada e invisibilizada nas estatísticas e nos debates sobre a indústria da moda […] marginalizadas dos espaços de decisão do setor e do glamour das passarelas,” como afirma o coletivo.
Olhar para os impactos da crise climática na indústria da moda sob uma perspectiva de gênero, raça, classe e território nos ajuda a entender vulnerabilidades específicas e traçar estratégias que possam alcançar as mulheres da base da cadeia. Porque para brecar o colapso climático precisamos não só nos afastar dos combustíveis fósseis, mas também combater as desigualdades e colocar os direitos humanos, e os das mulheres particularmente, no centro das decisões.
Isso significa abordar questões como a integração das necessidades e direitos das mulheres às políticas de resposta a desastres, violência de gênero e discriminação social, além da redistribuição de recursos econômicos por meio de políticas – públicas e corporativas – que possam garantam uma transição justa. Somente com igualdade econômica, de gênero e racial, em condições de trabalho decentes, é que as mulheres estarão mais fortalecidas e terão mais recursos para enfrentar os desafios impostos pela crise do clima.