Em um artigo a quatro mãos publicado pelo Brasil 247, a blogueira Sara Goes e o jornalista Reynaldo Aragon apresentam uma intriga contra um dos grandes nomes da defesa da liberdade de expressão no Brasil, o norte-americano Glenn Greenwald. Ao fazê-lo, acabam revelando o quanto eles, e não Greenwald, se tornaram porta-vozes da política oficial do imperialismo.
Disfarçado de reportagem, a peça caluniosa narra parte do depoimento de Greenwald ao Senado Federal:
“Ontem, 30 de abril de 2025, véspera do feriado do Dia do Trabalhador, Glenn Greenwald compareceu à Comissão de Segurança Pública do Senado Federal. A sessão, esvaziada da atenção de parte da imprensa e da opinião pública, passou quase despercebida, um efeito colateral da data e da estranheza da própria cena.”
Não por acaso, o texto opõe o Dia Internacional de Luta dos Trabalhadores ao depoimento. A ideia é apresentar Greenwald como um inimigo da classe operária. Afinal, em vez de participar de um ato em defesa das reivindicações da única classe progressista da sociedade, o norte-americano estava em uma sessão no Senado. O que Goes e Aragon esqueceram de dizer, no entanto, é que a burocracia sindical e as direções da esquerda institucional, que teriam de fato obrigação de mobilizar para o Primeiro de Maio, abandonaram os trabalhadores completamente na data.
O presidente Lula, por exemplo, se escondeu debaixo da cama e se limitou a gravar um vídeo com promessas vazias. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) enviou uma representação para o ato mafioso da Força Sindical e da Bolsa Valores. O único setor que se opôs à essa capitulação vergonhosa foi o Partido da Causa Operária (PCO), que chamou um ato independente, revolucionário e classista. Cobrar Greenwald, que é apenas um jornalista liberal, de qualquer coisa diferente do que fez a burocracia sindical é pura hipocrisia.
Após falar do Primeiro de Maio, os autores introduzem aquela que é a essência da intriga:
“Convidado por parlamentares alinhados à extrema direita, como Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Eduardo Girão (NOVO-CE), Greenwald foi chamado a comentar o vazamento de áudios envolvendo um ex-assessor do ministro Alexandre de Moraes. Sua presença, por si só, escancarou um processo em curso: a reconfiguração de sua imagem de jornalista investigativo para a de operador retórico alinhado a uma agenda transnacional de desestabilização institucional.”
Greenwald, portanto, não apenas não mobilizou os trabalhadores para um inexistente ato de Primeiro de Maio, como atendeu ao chamado de parlamentares alinhados à extrema direita! Estaria, aí, o seu crime. Incrivelmente, os mesmos autores não se insurgiram contra o próprio presidente Lula quando este apoiou a candidatura de Hugo Motta (Republicanos) à presidência da Câmara dos Deputados. Novamente, a hipocrisia…
Há, contudo, uma diferença enorme entre apoiar um picareta para a presidência da Câmara e participar de uma sessão no Senado. Greenwald foi convidado para falar, e tão somente isso. Não foi chamado para declarar voto em nenhum deputado da extrema direita, não foi convidado para tecer elogios ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), não foi convidado para defender a perseguição da esquerda e do movimento operário. Ele foi chamado para dar a sua opinião.
Se isto fosse um erro, todas as lideranças de esquerda que concederam uma entrevista para a rede Globo mereceriam o desprezo de Goes e Aragon. Afinal, a Globo não é apenas “alinhada à extrema direita”, ela apoiou a ditadura militar fascista de 1964-1985 e apoiou o golpe de 2016, que pariu o bolsonarismo enquanto movimento de massas.
O que é um crime político, no entanto, é o contrário. Isto é, quando a esquerda e o movimento operário convidam para as suas fileiras os seus inimigos de classe para que estes defendam os seus interesses. É o que fizeram, por exemplo, as “centrais sindicais”, que, segundo artigo da Folha de S.Paulo que não foi desmentido por elas, convidaram Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Ricardo Nunes (MDB) para o ato de Primeiro de Maio deste ano.
A intriga de Goes e Aragon consiste em dizer que Greenwald seria um aliado da extrema direita. Após acusarem-no do “crime” de dar sua opinião no Senado Federal, os autores passam a mais uma acusação estúpida:
“Durante audiência pública no Senado, o jornalista Glenn Greenwald voltou a criticar duramente o ministro Alexandre de Moraes. Em sua fala, sugeriu que os processos conduzidos pelo magistrado representariam um escândalo de proporções ainda mais graves que a Operação Lava Jato. Greenwald traçou paralelos entre os métodos adotados atualmente pelo Judiciário e as práticas abusivas frequentemente associadas à força-tarefa anticorrupção. As declarações do jornalista encontraram eco imediato entre parlamentares da direita. A senadora Damares Alves (PL-DF) afirmou, em tom acusatório: ‘Isso é realmente mentalidade dele. Eu não sou psicóloga, mas, para mim, essa é uma mentalidade muito perturbadora, muito perigosa.’ Filho do ex-presidente inelegível e prestes a responder por atos golpistas, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) agrediu o ministro do STF afirmando que ‘há um louco na corte, e eu tenho medo que este louco coloque fogo em Brasília.’”
A grande acusação, como se pode ver, é de deputados da extrema direita ter concordado com o que diz Greenwald. E o que o jornalista tem a ver com isso? Se Goes e Aragon dissessem algo com o que a extrema direita concordasse, eles automaticamente seriam aliados da extrema direita? É algo que não faz o menor sentido.
O mais problemático, no entanto, é que os autores se recusam a entrar no mérito do que diz Greenwald. Uma pessoa progressista analisaria as denúncias do jornalista norte-americano, e não os comentários feitos por meia dúzia de desqualificados cuja opinião muda cinco vezes ao dia.
A questão é: há ou não “práticas abusivas” por parte do Supremo Tribunal Federal (STF)? É ou não escandaloso o fato de que um juiz tenha suspendido os perfis do PCO na Internet após chamá-lo de “skinhead de toga”? É ou não escandaloso que alguém condene um ser humano a 14 anos de cadeia por ter manchado uma estátua de batom?
Os autores não discutem os problemas políticos que são apresentados por Greenwald. Em invés disso, o atacam. O motivo é óbvio: Goes e Aragon defendem o circo de horrores protagonizado por Alexandre de Moraes.
Não somente de insinuações é feito o texto de Goes e Aragon. Há algumas afirmações. Mas elas não passam de mentiras. Lembramos aos autores que o imperador Alexandre de Moraes, que eles tanto idolatram, é capaz de colocar pessoas na cadeia por mentir.
“Embora os registros não demonstrem proximidade pessoal ou ilegalidades cometidas por Moraes, setores da extrema direita têm explorado o caso para insinuar uma relação direta e comprometedora entre o ministro e seu ex-funcionário.”
Os registros mostram, sim, um conjunto de arbitrariedades. Segundo as mensagens vazadas, Eduardo Tagliaferro, então funcionário de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), agia sob ordens do ministro para obter informações que não eram de sua competência. Isto é, que o juiz atuava acima de tudo como promotor, como alguém parcial e interessado, desde o início do processo, na condenação do investigado.
Com essa mentira, fica ainda mais claro qual é o objetivo do artigo: criar um clima de histeria que impeça um debate sério sobre a atuação criminosa do STF. Para Goes e Aragon, Greenwald ou qualquer um que denunciem os crimes de Moraes não devem ser ouvidos, pois seria algo de interesse exclusivo da “extrema direita”.
Após apresentarem o fundo da divergência — Goes e Aragon caluniam Greenwald porque defendem a máfia da toga —, os autores comentam a trajetória do jornalista norte-americano.
“Glenn Greenwald tornou-se conhecido mundialmente em 2013 ao publicar, no jornal britânico The Guardian, reportagens baseadas em documentos vazados por Edward Snowden. As revelações escancararam os programas de espionagem massiva operados pela NSA e seus aliados. O trabalho rendeu a ele, e à redação do Guardian, o Prêmio Pulitzer. Em 2014, cofundou o site The Intercept, com financiamento de Pierre Omidyar, e passou a atuar com maior liberdade editorial, defendendo a proteção de fontes e a vigilância sobre o poder estatal.”
Até aí, a biografia corresponde aos fatos. Os autores apenas poderiam ter acrescentado que a primeira grande reportagem de Greenwald atingiu em cheio as entranhas do imperialismo. Isto é, que, a partir de então, o jornalista norte-americano havia se apresentado como um inimigo de uma máquina monstruosa de conspirações contra todos os povos do mundo. Tanto é assim que Snowden poderia enfrentar 175 anos de prisão, caso não tivesse conseguido asilo na Rússia. A perseguição a Snowden foi tamanha que o presidente da Bolívia, Evo Morales, teve que fazer um voo forçado, pois o tráfego aéreo na região onde estava havia sido fechado para que as autoridades norte-americanas tentassem prender o ex-agente da NSA.
O caráter anti-imperialista da denúncia de Greenwald, que é ignorado pelos autores ao comentar a sua biografia, será de grande importância para a análise dos próximos trechos do artigo publicado pelo Brasil 247.
“Greenwald mudou-se para o Brasil em 2005, motivado por seu relacionamento com o então ativista David Miranda. Ganhou notoriedade no país com a ‘Vaza Jato’, série de reportagens que mostravam conluios entre o juiz Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato. Em entrevista à Democracy Now! Afirmou: ‘Os vazamentos mostram que Moro agiu não como juiz imparcial, mas como coordenador da acusação’. O impacto das revelações foi profundo, culminando na anulação das condenações de Lula e na exposição internacional do lawfare como método político.”
Uma vez mais, os autores ignoram o aspecto central da denúncia: Greenwald expôs a participação incontestável do imperialismo no golpe que resultou na prisão do hoje presidente Lula. A “Vaza Jato” teve o mérito de demonstrar como Deltan Dallagnol, por exemplo, atuava como uma marionete do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
“Mas a partir de 2020, Greenwald passou a mudar de foco. Após deixar o Intercept alegando censura, referindo-se a um texto sobre Hunter Biden, começou a publicar em plataformas como Substack, Locals e Rumble. Essas plataformas têm sido centrais na arquitetura da extrema-direita digital global, ao defenderem um modelo de ‘liberdade irrestrita’ de expressão que, na prática, abriga negacionismo, discurso de ódio e desinformação.”
Não houve mudança de foco. Uma vez mais, Greenwald tentou trazer à tona um escândalo que exporia o funcionamento da grande máquina de repressão aos povos: o imperialismo. O jornalista norte-americano procurava apresentar ao público o caso do notoriamente criminoso Hunter Biden, filho de Joe Biden, então presidente dos Estados Unidos. O jornalista foi censurado porque, para o imperialismo, os crimes do Partido Democrata não deveriam ser conhecidos pelo público — assim como os crimes da NSA e da Lava Jato.
Hunter Biden se revelou tão criminoso que, ainda que protegido pelo regime político, acabou condenado. Joe Biden, por sua vez, se mostrou tão ligado ao imperialismo que comandou o pior genocídio dos dias de hoje, a guerra contra o povo palestino.
Dizer que alguém “mudou de foco” porque mudou de plataforma é um argumento que não pode ser levado a sério. Greenwald mudou de plataforma simplesmente porque queria publicar o seu conteúdo em um meio que não fosse tutelado pelos serviços de inteligência do imperialismo, como o Intercept mostrou ser.
O último capítulo da biografia de Greenwald escrita por Goes e Aragon diz respeito à defesa da liberdade de expressão — coisa que nem os detratores do jornalista norte-americano são capazes de esconder.
“No Brasil, o alvo de suas críticas passou a ser o Supremo Tribunal Federal, especialmente o ministro Alexandre de Moraes. Greenwald passou a acusá-lo de autoritarismo, censura e perseguição política. (…) As declarações de Greenwald coincidiram com o aumento dos ataques bolsonaristas ao STF e com o fortalecimento das redes de desinformação que instrumentalizam a retórica da ‘liberdade de expressão’ para proteger crimes digitais. (…) É também revelador seu alinhamento com Elon Musk, que o promove constantemente na plataforma X. Em abril de 2024, Greenwald afirmou no Substack: ‘As tentativas do STF de regular as redes sociais não têm nada de democráticas. São táticas de silenciamento institucional’. Essa narrativa não apenas se aproxima do discurso das big techs que lucram com desregulação informacional, mas ajuda a internacionalizar o conflito, apresentando o Brasil como exemplo de censura estatal, mesmo quando a realidade é o combate a milícias digitais organizadas.”
Novamente, muito escândalo e nenhum argumento. Greenwald simplesmente manteve a sua coerência ao criticar a principal trincheira do imperialismo no regime político brasileiro: o STF. O jornalista norte-americano acusou de “autoritarismo, censura e perseguição política” um juiz que, sem sombra de dúvidas, praticou “autoritarismo, censura e perseguição política”. O que dizer de um juiz que multa uma pessoa simplesmente porque apareceu em um vídeo? O que dizer de um juiz que não apenas condena as pessoas pelo que falam, mas que é capaz de bani-las por completo de toda a atividade na Internet?
Não existe “crime digital”. Existe o crime e ponto final. O crime é aquilo que é tipificado como tal por uma Lei. Criticar juiz não é crime. Ofender um homossexual não é crime. Contestar o sistema eleitoral não é crime. Em resumo, opinião não é crime. Portanto, a defesa da “liberdade de expressão”, entre aspas, é a defesa da liberdade de expressão. Afinal, só há uma defesa possível deste direito fundamental: a liberdade de expressão irrestrita. Qualquer coisa diferente disso é uma ditadura.
As big techs que mais lucram são aquelas que são sustentadas pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos. Quanto a essas, não há nenhum protesto de Goes e Aragon. Nem mesmo quando elas censuram cidadãos brasileiros!
A conclusão inacreditável dos autores é a de que “Greenwald, nesse processo, tornou-se um operador discursivo da guerra híbrida”, seja lá o que isso signifique. “Ao denunciar as instituições brasileiras em arenas internacionais, ao proteger os interesses do Vale do Silício sob o pretexto da liberdade e ao articular-se com os agentes políticos da nova direita global, sua atuação ultrapassa o jornalismo investigativo. Constrói-se como escudo retórico, mas também como arma cognitiva, ajudando a corroer a legitimidade de estruturas democráticas que ainda resistem à captura algorítmica e à colonização informacional”.
Fica claro que o que Goes e Aragon chamam de “guerra híbrida” é a campanha contrarrevolucionária do imperialismo segundo a qual o mundo estaria dividido entre “democracias” e “ditaduras”. E Greenwald, na medida em que é chamado para uma sessão promovida pela extrema direita, estaria ao lado da “ditadura”.
Como o caso de Hunter Biden demonstrou, a “ditadura” é tudo aquilo que o imperialismo vê com maus olhos. Isto é, aquilo que está em contradição com a mais sangrenta ditadura que a humanidade já viu: a ditadura do grande capital.
A trajetória de Greenwald não mostra um homem que tenha mudado de princípios. Ela apenas reflete que a defesa da liberdade de expressão e a denúncia dos crimes do imperialismo causa um impacto diferente entre os diversos setores da sociedade a depender da época em que ocorrem.
Há alguns anos, a esquerda pequeno-burguesa costumava apoiar, ainda que de maneira tímida e conservadora, tais posições democráticas. Agora, com a pressão cada vez maior do imperialismo, que está em uma contraofensiva, essa esquerda, acuada, covarde, defende a censura e a ditadura dos monopólios.
Greenwald, no que diz respeito aos seus princípios democráticos, não mudou. Quem mudou é quem se dizia de esquerda e hoje defende o rei sol do Brasil, Alexandre de Moraes, para quem a Lei é ele próprio.