Os dados mais recentes do Censo 2022, divulgados pelo IBGE, revelaram que as mulheres evangélicas têm, em média, 1,74 filho, índice superior à média nacional (1,55) e maior do que todos os demais recortes religiosos. Embora esse número permaneça abaixo do chamado nível de reposição populacional (2,1), chama atenção por ser o único, entre os principais grupos religiosos, a ultrapassar a média nacional. Ainda é cedo para estabelecer uma relação causal entre fé e fecundidade, já que fatores como renda, escolaridade e acesso a serviços públicos influenciam nos padrões reprodutivos. Mas, mesmo com todas as ressalvas metodológicas, os números já permitem que se ilumine uma realidade muitas vezes negligenciada: a da maternidade de mulheres que continuam gerando, mas são raramente cuidadas.

Em muitas denominações evangélicas vigora o que se pode chamar de teologia da fertilidade. Uma doutrina não oficial, mas amplamente difundida, que apresenta a maternidade como sinal de bênção divina e valoriza a família numerosa como expressão da vontade de Deus. Filhos são vistos como herança espiritual e cumprimento de promessas. O discurso é raramente acompanhado por uma reflexão sobre o pós-parto e o cuidado contínuo necessário à sobrevivência dessas mães e de suas crianças. A ausência de estrutura para amparar a “missão sagrada” transforma bênção em fardo. Incentivada a gerar, elas são deixadas sozinhas para criar.

A figura da mãe evangélica é reverenciada como “coluna do lar”, símbolo de resistência e doação. É comum ouvi-la ser chamada de guerreira, serva fiel, mulher virtuosa. Por trás da retórica elogiosa, instala-se uma estrutura que mascara o esgotamento. Os púlpitos exaltam a maternidade como missão divina, mas raramente criam espaços para escutar o cansaço ou a solidão dessas mulheres. Empurrada para uma existência sacrificada, elas têm o dever de cuidar do sustento, educação, espiritualidade, e ainda manter firmeza emocional.

Quando a vida dos filhos descarrila, seja na criminalidade, na droga ou na pobreza extrema, o julgamento recai implacavelmente sobre ela. A teologia da culpa estabelece que a mulher falhou como cristã, como esposa e como mãe. A estrutura que falta é disfarçada de negligência materna. Soma-se a isso outro processo de precarização: o da “diaconisa doméstica”. Muitas ainda se dedicam intensamente às atividades da igreja seja no louvor, na cozinha do templo, na liderança do ministério infantil, na recepção dos cultos. Serviço exaltado espiritualmente, mas nunca reconhecido como trabalho real. Não há descanso ou compensação. A dedicação à fé suga o tempo que poderia ser investido em autocuidado. Na precarização santificada, a mulher serve até o esgotamento e, se tudo der errado, ainda é ela quem carrega a culpa.

Muito se fala da ideia de que a comunidade evangélica funciona como rede de apoio onde ninguém caminha sozinho. Para muitas mães evangélicas essa promessa é uma falácia emocional. A solidariedade anunciada nos púlpitos frequentemente se limita a gestos simbólicos como uma oração em grupo, um versículo enviado por mensagem, um conselho genérico sobre confiar em Deus. As demandas concretas como quem busca o filho na escola, quem ajuda com a alimentação da semana ou quem oferece um turno de descanso para uma mãe que não dorme, permanecem sem resposta. A fé supre o discurso, mas não preenche a geladeira, não paga o gás, não leva as crianças ao médico.

Inspiradas e muitas vezes pressionadas a encarnar o arquétipo da “mulher virtuosa” de Provérbios 31, as mães evangélicas são levadas a acreditar que devem dar conta de tudo com graça, fé e um sorriso no rosto. Espera-se delas uma entrega quase sobre-humana. É preciso ser a esposa ideal, a mãe incansável, a fiel serva da igreja e, muitas vezes, também a provedora da casa. Não há espaço para fracassar. O ambiente eclesial costuma aplaudir o testemunho da mulher que venceu com oração, mas cala, ignora ou censura aquela que, em desespero, confessa não dar conta.

Essas mães são convocadas a ser tudo para todos e nada para si. Deve sustentar a casa, educar os filhos, servir ao marido, zelar pela fé da família, comparecer à igreja, manter a aparência e, acima de tudo, não reclamar. A espiritualidade é medida pela capacidade de aguentar calada. A igreja cobra entrega, o Estado nega suporte, e a sociedade naturaliza sua exaustão como virtude. Ninguém pergunta como ela dorme, com quem pode contar, quantas vezes pensou em desistir. O que se celebra é a sua resistência quando o que ela precisava, talvez, seja apenas dormir. Não se trata de atacar a fé dessas mulheres, mas de fazer refletir e questionar sobre, finalmente, quem cuida daquelas que geram e servem. Talvez Deus as esteja ouvindo. Mas quem, aqui embaixo, vai finalmente responder?

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Last Update: 04/07/2025