O avanço da inteligência artificial generativa abriu uma disputa global em torno de uma questão delicada: quem detém os direitos autorais das obras criadas por máquinas? Enquanto alguns países entendem que apenas o trabalho humano pode ser protegido, outros enxergam criatividade suficiente no uso de prompts e na curadoria dos resultados para garantir a propriedade intelectual.

Esse debate tem dois lados. O primeiro, já amplamente discutido, envolve a remuneração por obras usadas no treinamento de modelos de IA. O segundo, mais recente e ainda cercado de incertezas, foca no conteúdo produzido por essas tecnologias. Afinal, se a lei protege o autor, como lidar com obras que não têm uma autoria humana direta?

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Nos Estados Unidos, a posição é clara. Em 2023, o Escritório de Direitos Autorais reconheceu proteção à história em quadrinhos Zarya of the Dawn, mas retirou os direitos sobre as imagens criadas por IA, mantendo apenas o texto e a organização realizados pela autora. A Justiça foi ainda mais categórica: em março deste ano, uma corte federal de apelações decidiu que a obra gerada por IA intitulada A Recent Entrance to Paradise não poderia receber registro. O tribunal justificou que, para serem protegidas, as criações precisam ser “de autoria, em primeira instância, de um ser humano”. A mensagem é dura: os prompts, por mais sofisticados, não bastam para garantir autoria.

Do outro lado do mundo, a China adotou caminho oposto. O Tribunal da Internet de Pequim decidiu, também em 2023, que imagens geradas por IA podem ser protegidas por direitos autorais. Para os magistrados, o esforço intelectual do usuário na escolha dos comandos e no refinamento dos resultados é suficiente para ser considerado ato criativo.

O Reino Unido e a Irlanda, por sua vez, ocupam uma posição intermediária. Ambos os países oferecem proteção para “obras geradas por computador”, mas essa salvaguarda tem futuro incerto. Consultas públicas recentes no Reino Unido avaliaram a possibilidade de eliminar essa cláusula, enquanto o Conselho Consultivo de IA da Irlanda também recomendou que o país reconsidere essa proteção.

Essa falta de consenso global pode gerar sérios entraves práticos. Um mesmo conteúdo criado por IA pode estar protegido em Pequim, mas ser considerado de domínio público em Boston. Isso significa que um jingle publicitário ou um texto de marketing feitos por IA nos Estados Unidos poderiam, em tese, ser usados livremente por qualquer pessoa.

E o impacto não se limita ao campo das artes. Empresas de software, por exemplo, enfrentam desafios ainda maiores. Nos EUA e em outras jurisdições, trechos de código produzidos por IA não recebem proteção de direitos autorais, ainda que o produto final — um software completo — possa ser protegido. Essa brecha coloca em risco fusões e aquisições que dependem da clareza sobre o que pertence, de fato, à companhia.

A questão também atinge contratos de trabalho e de prestação de serviços. Normalmente, esses documentos determinam que qualquer obra criada por funcionários ou contratados seja cedida à empresa. Mas surge um dilema: não é possível transferir a propriedade de algo que a lei não reconhece como existente.

Impedir o uso de IA não é uma solução prática. Seria tão irrealista quanto exigir que todo material fosse produzido à mão. Por isso, especialistas defendem que novas alternativas legais precisam ser elaboradas. Uma saída seria enquadrar o conteúdo gerado por IA como segredo comercial, e não como obra protegida por direitos autorais.

Na Irlanda, o Conselho Consultivo de IA — que reúne juristas e especialistas — chegou a recomendar a criação de uma forma limitada de proteção para determinados trabalhos feitos por IA. Mas a proposta enfrentou forte resistência da comunidade artística, que teme perder espaço ou reconhecimento. Isoladamente, dificilmente um país conseguirá implantar uma regra desse tipo sem gerar insegurança jurídica internacional.

O que está em jogo é mais profundo: as regras de direitos autorais, criadas no século XIX para um mundo analógico, estão sendo tensionadas por máquinas capazes de compor músicas, programar códigos e criar imagens em escala industrial. Até agora, os processos judiciais têm se concentrado em acusações contra empresas de IA por uso indevido de obras já existentes — como no caso das ações movidas por Getty Images e pelo The New York Times. Mas a questão sobre quem é dono de conteúdos inéditos criados por IA deve chegar em breve aos tribunais.

No fim das contas, a inteligência artificial está mudando o conceito de autoria. Para sobreviver a essa transição, especialistas afirmam que será necessário reescrever contratos, repensar estratégias de propriedade intelectual e fortalecer mecanismos de proteção baseados em confidencialidade e segredos comerciais. Apoiar-se apenas em direitos autorais, que já não dão conta da realidade, pode deixar empresas e criadores vulneráveis em um cenário de rápida transformação.

Com informações de Financial Times*

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Last Update: 24/08/2025