Que Brasil é este?, por Antonio Machado
Depois do desnecessário tumulto sobre o Pix, uma “pixotada” como bem o definiu o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, o governo continua gerindo muito mal a crise de proveta fomentada pela oposição, tal como o PT azucrinou todos os governantes antes de Lula se eleger e passar a ser vidraça. Como se diz no futebol, quem marca bobeira toma vaia da torcida. Esse risco sempre esteve presente, dada a vitória magra de Lula sobre Bolsonaro em 2022.
Os governistas atribuem a maior derrota de Lula desde que ele não pagou para ver e mandou a Receita recolher a Instrução Normativa que provocou o deus-nos-acuda ora a “problemas de comunicação” da equipe do ministro Fernando Haddad, ora a “fake news” da oposição, esta a tese encampada por setores da imprensa tão perdida quanto os marqueteiros petistas e os exegetas dos sentimentos populares.
A poucos ocorreu cogitar se o anúncio de que a Receita passaria a monitorar as transações com pix e outros meios de pagamentos acima de R$ 5 mil de pessoas e R$ 15 mil, de empresas, seria uma forma de tributar com o IR na declaração anual as movimentações financeiras não declaradas. A leitura da IN indica este propósito, entre eles o de coibir lavagem de dinheiro, o que não é errado.
O que houve?
Aos impostocratas, seriam apanhados ganhos dos novos ricaços das bets, de médicos, dentistas e advogados, artistas de expressão, comerciantes de gado, cujos movimentos são, em geral, com créditos e débitos informais em suas contas em fintechs e cartões digitais.
Isso é fato. Mas também o é que desde a pandemia o que mais tem crescido na baixa renda são as atividades informais, o que inclui a população atendida por programas tipo Bolsa Família e BPC, que acumulam com prestação de serviços pagos com pix sem nota alguma.
Essa foi, entre as muitas desatenções, a que mais demorou para o governo se aperceber. Que a oposição vem penetrando nas faixas mais baixas de renda e estabelecendo com elas diálogos contínuos, como fez o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG), comunicador inato.
A fake new da taxação do pix passou logo, o que reforçou o que se sabe: a exata compreensão das classes de renda mais baixa sobre os fundamentos do pix. Foi o que este fenômeno da ala mais radical da direita explicou, mas destacando que seriam tributadas com o IR as rendas informais. O governo foi nocauteado de pé assim.
Cutucaram o eleitor de Lula
Diversas camadas de erros explicam o esgarçamento da confiança no governo, que a brutal desvalorização cambial sugeria limitar-se a traders de papéis, os tais farialimers. A trapalhada da Fazenda e da Receita com o pix demonstrou ser muito maior, alcançando grande parte do eleitorado até então considerado cativo de Lula.
Assim foi por que desde as eleições de 2016, quando o PT começa a murchar no eleitorado, deu-se pouca atenção ao que já havia sido identificado pelo instituto de estudos do partido: o desejo do piso da pirâmide social de ascender pelos próprios meios, algo mais amplo do que o chamado ‘empreendedorismo’.
Essa distração ou soberba de analistas pespegou também a turma de economistas a serviço do mercado financeiro, razão pela qual erram tanto em suas projeções sobre o crescimento movido pela expansão do gasto público. Punham fé nas promessas de austeridade fiscal da Fazenda a cada início de ano e terminavam frustrados com o resultado do PIB muito acima do que previam em seus relatórios.
A Renda Nacional Disponível Bruta das Famílias (RNDBF), calculada pelo Banco Central, indica crescimento no conceito restrito – que exclui alugueis e capta o potencial de consumo, poupança e dívidas das famílias com maior acurácia que dados da Pnad – de expressivos 6,8% real em 12 meses até novembro, contra média de 7,5% em 2023 e 7,8% nos últimos dois anos, segundo o economista Fernando Montero.
Vem daí a antipatia petista ao programa fiscal: se desacelerar o gasto, como deve ocorrer este ano, cai o consumo, portanto o ritmo do crescimento econômico e o emprego. Mas que tipo de trabalho?
As novas classes populares
O governo manifesta entusiasmo com a taxa de desemprego de 6,1% até novembro, a menor nos registros do IBGE, e destaca a criação de empregos formais, com carteira. É fato. Como também o é que a amostra pesquisada exclui como desocupados os que afirmam ser MEI, autônomos, ‘uberizados’. É uma massa de gente que vai a 40 milhões de pessoas, assim como quem recebe renda dos governos regularmente passa de 100 milhões, entre bolsas sociais e servidores.
Em estudo publicado na Rede Estação Democracia, os pesquisadores Carlos Águedo Paiva, da Fundação de Economia e Estatística do RS, e Allan Lemos Rocha, estatístico, afirmam que a queda do desemprego é “indissociável” do crescimento relativamente baixo do mercado de trabalho, “e ele se deve, em termos relativos, mais ao crescimento do trabalho informal que do formal”.
O estudo estima que 76% dos novos postos de trabalho gerados na última década representam MEIs (microempresários individuais). A Receita cutucou essa gente.
Conclusão do estudo: “Mesmo tendo caráter meramente hipotético, essa simulação pode contribuir para que alguns dos analistas de esquerda que não entendem por que as eleições recentes não foram uma “festa do governo Lula” olhem para a realidade econômica com um pouco mais de complexidade e não apontem com tanta veemência o dedo indicador e acusatório para a turma do andar de baixo”.
A maioria confia em si mesma
A incompreensão do governo, intelectuais e colunistas de TV que falam sobre tudo, um dos quais soltou a pérola que “desacreditar e atacar medidas públicas é crime”, referindo-se ao deputado do PL, está na raiz do quadro econômico deteriorado. Tanto pela política econômica, obcecadamente fiscalista, quanto pelo relacionamento com o Congresso, onde centro e direita têm 75% dos votos. É ruim acreditar poder intimidá-los com ministros companheiros do STF.
E a opinião do distinto público sobre isso? Pesquisa do Instituto Locomotiva feita no início de dezembro já sinalizava que a maioria estava desenganada com os governos em geral. Indagados sobre quem poderia contribuir para seu bem-estar em 2025, 46% disseram que só confiavam em si próprios, 22% achavam que sua vida depende de Deus ou de sua Igreja, 13% atribuíram à família e 5% à sorte.
Dos 6% que disseram esperar alguma ajuda dos governos, apenas 4% falaram da área federal. Ao jornal Estado, Renato Meirelles, do Locomotiva, disse que tais resultados estão em sintonia com as dificuldades enfrentadas pelo governo Lula.
O novo marqueteiro no Palácio do Planalto, Sidônio Palmeira, chegou com o desafio de pôr o governo, sobretudo Lula, em evidência. Se fosse só isso, seria fácil. Reconhecer erro é nobre, acusar os outros por isso, falando em fake news, é infame. O abalo na confiança tem nome e endereço.
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