Meu processo de autoconhecimento enquanto mulher negra foi um desafio doloroso, que me fez lembrar de uma entrevista do professor e sociólogo Thiago Torres, o Chavoso da USP, para o Mano Brown, no podcast Mano a Mano.
Thiago contou que se sentiu negro quando teve acesso à universidade e, quando as discussões permeavam questões raciais, sua opinião era solicitada. Aos poucos, vivências, discussões, entendimento político e social fizeram com que ele se sentisse homem negro.
Comigo, a experiência foi semelhante: fiz o ensino fundamental em uma escola pública de periferia em Sorocaba, interior de São Paulo. Depois, fui bolsista em uma escola particular e, por fim, bolsista novamente no curso de medicina de uma universidade particular. Transitar em ambientes cada vez mais elitizados me fez encarar não só um abismo social, mas também de identificação. Eu não me encaixava. Quando o convite para participar do coletivo de alunos negros de medicina veio, foi uma espécie de revelação.
Passei a estudar colorismo. O colorismo é uma das muitas faces do racismo que separa pessoas negras de acordo com os traços e tom de pele, determinando a forma como serão vistas e tratadas. Desde o violento processo de miscigenação brasileiro, essa divisão faz com que pessoas negras sejam toleradas em alguns espaços quanto maior for a facilidade de ignorarmos seus traços de raízes africanas — uma herança de nosso passado escravagista.
Em 2020, cerca de 3% dos formandos de medicina se declararam pretos, enquanto 24% se declararam pardos. Meu fenótipo, em especial o cabelo, passou a ter maior valor no sentido de me identificar como preta.
Já formada, e estudando um pouco mais sobre classe e cor, estava mais preparada para entender onde estavam as micro agressões racistas do dia a dia. O momento canônico na vida de todo médico preto aconteceu: “médica? Mas você não tem ‘cara de médica’”…
É porque a “cara” de médico é branca, de olhos claros. As pessoas não estão acostumadas a encontrar alguém como eu em “postos de prestígio”. Elas não esperam isso de nós. É uma surpresa ofensiva, como se dissessem: “uau, eu não esperava algo ‘assim’ de alguém ‘como você’”. Nossa capacidade é medida pela nossa cor, seja ela mais clara ou mais escura.
Conviver com mulheres pretas na medicina veio com o passar dos anos. Eu me perguntei por muito tempo onde elas estavam. Tive um ou dois chefes negros durante a faculdade, uma ou duas durante a residência. Ao longo da vida, apenas uma médica cacheada, que me marcou, junto da pediatra que ostentava a orelha cheia de piercings da Disney (para felicidade das crianças e desespero dos pais). Me via sem referência com frequência.
Aliás, o papel da mulher negra dentro da medicina é algo a ser mencionado: James Marion Sims, ginecologista pioneiro na técnica de correção de fístula vesicovaginal após parto, desenvolveu sua técnica em diversas mulheres pretas escravizadas em procedimentos realizados sem consentimento ou anestesia, em mulheres como Lucy, Anarcha e Betsy, que foram submetidas a mais de trinta tentativas — citadas por ele mesmo em sua autobiografia. Uma estátua em sua homenagem permaneceu no Central Park, em Nova Iorque, até 2018 — um ano após o estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil” identificar que mulheres negras recebem menos anestesia para realização de episiotomia.
Outros estudos mais recentes vêm mostrando ser determinante o impacto do racismo em saúde, risco de depressão nessa população, dificuldade em acesso a tratamentos necessários. Mas também se percebe dados interessantes que avaliam o impacto positivo quando pessoas pretas cuidam umas das outras. Entre os dados, há um estudo indicando que recém-nascidos pretos cuidados por médicos pretos possuem maior sobrevida. Outro, experimental, mostra que pessoas pretas tendem a sentir menos dor quando atendidas por médicos pretos.
Ainda assim, a literatura médica é escassa. Livros de dermatologia sem fotos de manifestações cutâneas de diversas doenças (até mesmo mais prevalentes na população preta), ausência de evidências em literatura respaldando a prática de remoção de tranças em pessoas que serão submetidas a procedimentos cirúrgicos. Quem, a não ser nós mesmos, para produzir conteúdo científico voltados para nós?
“Tudo que nóiz tem é nóiz.”
Eu gostaria que outras pessoas pudessem se identificar comigo, com o que represento e com meus ideais do que realmente é a medicina. Eu quero cuidar de mulheres como eu e gostaria que elas se sentissem seguras e compreendidas por mim, porque as dores de mulheres pretas podem nem sempre ser as mesmas, mas em geral vêm dos mesmos lugares.
Quando me adicionaram em um grupo de mulheres médicas negras, de diversas especialidades, um pedaço de mim se curou. E ressignifiquei aquela ideia do encaixe: agora não me encaixava mais na imagem que criaram sobre o que é ser médica, mas passei a recolocar a medicina a partir do que é a minha vida, a minha história, a minha personalidade. Sou uma mulher negra. Uma médica negra. E isso é algo que ninguém pode me tirar.
Entender isso foi um divisor de águas. Deixei de comprar terninhos e sapatos desconfortáveis na esperança de passar direto pelas catracas do hospital e passei a viver mais confortavelmente — dos pés às tatuagens à mostra. Menos preocupada com bolhas (as dos sapatos e a das panelinhas de hospital), tive mais tempo livre para me posicionar e me fortalecer quando vivenciei momentos em que a “cara de médica” era solicitada. Resolvi devolver o desconforto me posicionando, afinal, mulheres negras, latino-americanas e caribenhas estão desconfortáveis — e tentando se encaixar — há mais de 1.500 anos. Eu, pelo menos quando consigo, não mais.