Sentado no bar durante uma convenção de escritores de livros policiais no Grand Hotel em Bristol, sudoeste da Inglaterra, tomando uma cerveja, me vem à mente um pensamento emocionante: este seria o cenário perfeito para um romance de assassinato.
Uma coisa que você aprende rapidamente numa convenção de escritores de policiais é, no entanto, que não há novos enredos de mistério e assassinato sob o sol.
Menciono meu pensamento a Antony Johnston, autor de dezenas de graphic novels e livros de mistério. Ele ri de um modo amigável e compassivo: “Sempre digo que alguém certamente me dirá exatamente isso pelo menos uma vez enquanto eu estiver aqui”.
No Bristol CrimeFest, assim como na vida, há apenas infinitas novas interpretações de temas antigos. A novidade deste ano é a ideia incontível de G.T. Karber, Murdle (publicado, no Brasil, pela Editora Intrínseca). Karber, um dos cem escritores presentes à convenção que desvendaram o mais antigo mistério: como fazer o crime compensar. O festival foi aberto com uma versão live de sua série policial Murdle. Antes disso, ele se sentou comigo para explicar como fez isso.
O primeiro Murdle foi o livro mais vendido em muitos outros países em 2023 e ganhou o British Book Awards. Ele envolve a resolução de cem assassinatos, com base nos quebra-cabeças diários que atraíram grande número de seguidores online.
Murdle é uma mistura rápida e viciante de Sudoku com Detetive, no qual o leitor é convidado a resolver um mistério. A cada dia, os detalhes de três ou quatro suspeitos, armas e locais do assassinato são fornecidos com pistas espertas e uma útil grade de dedução, acompanhados de quadradinhos para marcar.
O fenômeno começou em um guardanapo de restaurante, no início de 2022, quando Karber, que mora em Los Angeles e é roteirista e editor, estava no intervalo de filmes de pequena escala.
“Fiz alguns jogos para celular, histórias de terror curtas em que as pessoas podiam clicar em palavras diferentes”, recorda. No confinamento pandêmico, ele planejou lançar um quebra-cabeça de mistério diferente a cada semana. Murdle foi o primeiro que criou.

Quem matou? “Em tempos sombrios, a morte solucionável é algo enorme”, afirma o autor. No Brasil, o segundo volume de Murdle acaba de ser lançado pela Editora Intrínseca
Ele o enviou para um amigo apreciador de charadas e, dada a boa receptividade, fez em seguida uma planilha do tamanho de um romance com personagens e situações e criou um algoritmo que, a partir desses cenários, geraria quebra-cabeças diários.
Karber, um homem simpático e animado, com cavanhaque e várias camadas de ironia juvenil, sente que nasceu com essa vocação intrigante. Ele é filho de dois advogados do Arkansas e seu avô foi um agente do FBI na Califórnia. “Para grande decepção da minha mãe, não cursei Direito”, diz. “Murdle ajudou a justificar essa decisão.”
Enquanto escrevia o primeiro Murdle – já são três –, ele, para entrar no clima de mistério, leu as histórias de Padre Brown e G. K. Chesterton, e assistiu a muitas reprises de Columbo, série lançada no fim dos anos 1960. Há uma longa história de autores de policiais que criam enigmas de assassinato.
Agatha Christie, por exemplo, foi contratada em 1930 para elaborar uma caça ao tesouro de detetive para promover o turismo na Ilha de Man. Mas a habilidade para criar qualquer quebra-cabeça, assim como para escrever qualquer policial, está em encaixar o nível de dificuldade em algum lugar entre o diabólico e o satisfatório.
Karber aconselhou-se com “um mágico dos enigmas em Los Angeles”, David Kwong, que cria palavras-cruzadas para o New York Times, sobre como conseguir esse equilíbrio. Pensando na natureza repetitiva de Murdle, perguntou: “Por que as pessoas fazem Sudokus todos os dias, se é basicamente o mesmo quebra-cabeça?”
Kwong sabia a resposta: “Porque as pessoas não querem desafios, elas querem vencer!” Desde o início, o objetivo de Karber era dar ao leitor a sensação de “Resolvi o mistério!”, em vez de “Nunca vou resolver isso!”
O sucesso de Murdle reflete outro: o da literatura policial, que está crescendo. Uma pesquisa feita pela Nielsen aponta que, no Reino Unido, mais de 500 milhões de livros de crime e suspense foram comprados entre 2013 e 2022. São cem compras por minuto, incluindo um quinto de todos os audiolivros e mais de um terço dos e-books.

Efeito calmante. Na pandemia, Karber releu 40 romances de Agatha Christie – Imagem: Biblioteca do Congresso Nacional/EUA
O Bristol CrimeFest é um dos muitos festivais que celebram o gênero, e compete diretamente com Harrogate. Ambos os festivais têm a fama de hedonismo desenfreado. Dois anos atrás, segundo me disseram, os participantes aqui beberam tudo o que havia no bar, e o gerente teve de ir até a loja Tesco comprar suprimentos de emergência.
A história sugere que o apetite por literatura policial – e por quebra-cabeças, palavras-cruzadas e enigmas de modo geral – sobe e desce ao sabor da ansiedade e do medo. A era de ouro da ficção policial no Reino Unido sucedeu à Primeira Guerra Mundial e à pandemia de gripe espanhola.
Não é difícil entender a atração exercida por um assassinato numa casa de campo – em que a morte é um problema a ser resolvido por excêntricos adoráveis – quando o noticiário está cheio de carnificina.
É possível argumentar que o boom na escrita e na leitura de policiais – e em quebra-cabeças – desempenha uma função escapista em nosso tempo fragmentado. Karber diz ter passado os primeiros meses da pandemia relendo 40 romances de Agatha Christie como um “ritual calmante”.
“Em tempos sombrios, a morte solucionável é algo enorme”, afirma. “Se você puder se sentar durante uma ou duas horas e descobrir quem é o culpado, apontar o dedo para ele, estamos todos bem. Porque, isso, podemos resolver, entende?”
Com esse pensamento em mente, me sento para ver o evento Murdle. No palco, Karber é um showman. Os elementos do jogo são bastante simples. Seu coapresentador foi assassinado – há uma cena de crime isolada com cordas e a silhueta de um corpo no chão da sala de conferências – e há três suspeitos, todos escritores de policiais.
O conjunto de possíveis armas do assassinato inclui um alce furioso e um exemplar de Murdle. Por meia hora, os autores vagam pela sala, interrogando suspeitos, fazendo anotações e preenchendo suas grades de Murdle.
Alguns parecem mais imersos que outros no quebra-cabeça. Mas todos dotados de certo espírito colegial. Kaaron Warren, uma escritora de suspense australiana, uma das suspeitas de Murdle, sugere: “Tenho uma teoria de que as pessoas que lidam com assassinato e morte são sempre alegres”, diz. Lá pelas tantas, pareço ser a única pessoa que não decifrou o Murdle até o momento em que Karber anuncia os vencedores
Pode-se argumentar que o boom na escrita e na leitura de policiais desempenha uma função escapista em nosso tempo fragmentado
O bar está aberto. Volto para lá com Martin Edwards, chamado de “o melhor praticante vivo da história de detetive clássica”, autor da premiada história do gênero The Life of Crime (A Vida do Crime).
Filho de um metalúrgico, Edwards leu seu primeiro Agatha Christie aos 8 anos. Aos 10, estava escrevendo as próprias histórias de detetive e, apesar de uma longa carreira como advogado, nunca parou de fato. Nos últimos anos, o circuito de festivais de policiais levou-o a andar pelo mundo todo – Xangai, Havaí, Islândia.
“Ao escrever Life of Crime”, diz, “uma das coisas que me fascinaram foi a maneira como a carreira de alguns escritores parecia estagnar. Cinco romances e, depois, nada. Quando comecei a conhecer escritores de policiais em festivais, percebi o porquê…”
Digo que isso me lembra algo que o romancista Colm Tóibín me disse certa vez: chega um momento na vida de qualquer escritor em que você tem de decidir qual será a sua relação com o álcool.
“Exatamente”, diz Edwards. “Falando nisso, vamos tomar alguma coisa?”
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Quando o crime compensa’