Quando o Algoritmo Sufoca a Ironia: Uma Leitura de White Lotus

por Charles Pontes Gomes

A terceira temporada de White Lotus, concebida por Mike White, parece ter renunciado à sagacidade satírica que marcou suas iterações anteriores, degringolando para uma comédia vulgar, ancorada em clichês e lugares-comuns, como se tivesse sido engendrada por uma inteligência artificial genérica, incapaz de inovar ou surpreender. Talvez espectadores imersos na platitude existencial típica dos subúrbios abastados dos EUA tenham encontrado algum deleite nessa nova temporada. No entanto, já a partir do terceiro episódio, a experiência revela-se desoladora: a narrativa desdobra-se como um emaranhado de diálogos previsíveis e tentativas desesperadas de humor, protagonizados por personagens insossos — uma família burguesa, opulenta e fútil; três mulheres de meia idade mergulhadas em conflitos existenciais pueris; e outros núcleos igualmente frívolos, destituídos de qualquer profundidade. Diferentemente das temporadas anteriores, nenhuma figura consegue despertar empatia ou fascínio. Quando muito, arranca-se um sorriso ocasional, mas sem a fina ironia que outrora caracterizou a série. A obra descamba em interações burlescas entre personagens que beiram a caricatura, esvaziadas de qualquer nuance crítica ou sofisticação.

Esse esvaziamento estético e narrativo, notório já para profissionais do audiovisual, parece apontar para um fenômeno mais amplo e sintomático: a crescente dependência da inteligência artificial como ferramenta de criação no entretenimento de massa. A perda de qualidade e do encanto satírico que definiam White Lotus parece estar intrinsecamente ligada à superestimação das capacidades da IA em substituir processos criativos humanos: da elaboração da trama à construção dos personagens, da estruturação dos diálogos à concepção dos espaços e estratégias de humor. Quando o principal diferencial entre esta e as temporadas anteriores repousa justamente no uso intensivo de inteligência artificial, a obra levanta suspeitas, mesmo não sabendo do ocorrido nos bastidores: será que, na pressa por eficiência e inovação, acabaram sacrificando a alma da narrativa?

Mais do que uma crítica à temporada em si, este texto propõe uma reflexão sobre os limites — e os riscos — da automação criativa. White Lotus torna-se, assim, um estudo de caso desconfortável, no qual a sátira que outrora revelava com mordacidade as hipocrisias da burguesia abastada se dissolve em um conteúdo genérico, derivado, apático.

A Tailândia como “Não-Lugar

A escolha da Tailândia — inicialmente cogitava-se o Japão como cenário — reforça a noção de um “não-lugar”: um espaço transitório, intercambiável, desprovido de identidade. A representação do país na série ignora sua realidade multifacetada e dinâmica, reduzindo-o a um estereótipo de nação subdesenvolvida, refúgio de criminosos e lar de uma população empobrecida e iletrada, confinada a ocupações subalternas. Essa visão grotesca parece ter sido montada a partir de dados desconexos extraídos de um banco de IA, alheio a nuances culturais e sociais. O tratamento dispensado aos personagens tailandeses é, no mínimo, constrangedor, para não dizer, racista. A proprietária do hotel, privada de qualquer arco narrativo, limita-se a surgir em cena com um sorriso mecânico, como mera figura decorativa. O ápice do absurdo ocorre no clímax do episódio final, quando ela exclama, em tom melodramático buscando talvez parodiar a telenovela mexicana e brasileira: “Você acaba de matar teu pai, ele era teu pai!”. Desprovida de contexto ou propósito, a cena não provoca risadas e apenas evidencia a pobreza criativa da abordagem.

Os únicos dois personagens locais com algum desenvolvimento — um segurança e uma camareira — são retratados como figuras infantilizadas, cujos dilemas beirariam o risível e acaba por soar ofensivos a técnica de “humor idiota” usada para retratá-los. Se havia aqui alguma pretensão crítica, ela se dissipa por completo, reforçando a noção absurda de que a Tailândia seria habitada exclusivamente por indivíduos de intelecto limitado. Essa caricatura ignora por completo o fato de que o país integra os Tigres Asiáticos, ostentando uma economia vigorosa, alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e sistemas de saúde e educação robustos. A representação distorcida da série não é apenas desonesta — é estupidamente reducionista, ecoando a visão américo-cêntrica que enxerga o mundo como um mosaico de cenários e países intercambiáveis.

Humor Rasteiro: Clichês e Preconceitos como Muleta Criativa

Um dos aspectos mais problemáticos desta terceira temporada de White Lotus é o uso preguiçoso — e, por vezes, constrangedor — de estereótipos como base para o humor. O que antes era sátira inteligente, agora se transforma em um desfile de clichês reciclados, utilizados não como ferramenta crítica, mas como muleta criativa. A figura do mafioso russo, por exemplo, é tão caricata e datada que mais parece ter sido resgatada de um arquivo empoeirado de roteiros dos anos 80, dignos de filmes de ação estrelados por Arnold Schwarzenegger. Em vez de subverter ou desconstruir essas imagens, o roteiro as reproduz de forma mecânica e sem qualquer nuance, como se estivesse mais preocupado em preencher lacunas do que em dizer algo relevante.

Essa escolha não é apenas uma questão estética ou de estilo: ela revela um empobrecimento claro da proposta narrativa da série. O humor que antes era ácido, preciso e desconfortavelmente verdadeiro, agora escorrega para o terreno do banal e do artificial. A impressão que se tem é a de que o roteiro foi costurado a partir de uma colagem de referências previsíveis, como se uma inteligência artificial ainda em fase de aprendizado tivesse sido encarregada de combinar elementos desconexos, sem qualquer sensibilidade cultural ou intenção crítica. Tudo soa genérico, montado para simular uma sátira, mas sem jamais alcançá-la de fato.

O problema não está apenas na presença de estereótipos, mas na falta de consciência com que são utilizados. Em tempos em que a representação importa e o discurso audiovisual molda percepções culturais, recorrer a figuras planas e preconceituosas como atalho para o riso não denota apenas uma falha artística, sinala também um sintoma preocupante de um roteiro desprovido de ousadia, propósito e originalidade. A comédia fácil, baseada em preconceitos e repetições, pode até provocar um riso imediato, mas evidencia o que mais falta à série nesta temporada: substância.

A Sátira que Poderia Ter Sido, mas Não Foi

A série desperdiça a oportunidade de criticar, por exemplo, a decadência socioeconômica dos EUA — o colapso da classe média, a falência do sistema de saúde, que recusa aprovar tratamentos e cirurgias e empurra cidadãos a buscarem ajuda médica e hospitalar sobretudo em países como a Tailândia que possui uma rede médica de excelência espalhada pelo pais e de acesso universal em sua rede pública. Uma sátira inteligente poderia ter explorado essa diáspora silenciosa, criando personagens de classe média arruinada, que viajam sob o pretexto de turismo enquanto, na verdade, buscam desesperadamente assistência médica acessível. Em vez disso, optou-se por ridicularizar, não os Estados Unidos, mas a Tailândia, reforçando a visão distorcida de um país miserável, e lugar de criminosos endinheirados estadunidenses, refúgio atual do personagem que faz o vilão na segunda temporada. Se o objetivo era a sátira, o alvo foi não apenas errado, talvez nunca tenha sido realmente mirado.

O espaço mutante, esse não-lugar desprovido de identidade própria que a Tailândia encarna nesta temporada, não é apenas um pano de fundo exótico, é um sintoma preocupante de um futuro em que os espaços e as identidades tornam-se cada vez mais intercambiáveis, automatizados, e esvaziados de qualquer singularidade. Esse cenário, que se pretende global, na verdade dissolve as particularidades locais em uma massa genérica, facilmente replicável, como se o mundo inteiro pudesse ser finalizado a partir de um mesmo template cultural. Assim como os modelos de linguagem ainda em treinamento, a Tailândia da série surge como um território amorfo e desenraizado, onde a localização geográfica pouco importa — é um cenário placeholder, uma simulação mal calibrada de autenticidade. Poderia ser qualquer ilha: tailandesa, filipina, ou apenas uma abstração tropical. E é justamente nesse vazio que a narrativa degringola.

A série muitas vezes se aproxima do surreal, não por ousadia estética, mas por desorientação narrativa: os diálogos são absurdos, as situações desconexas, lembrando os textos desconjuntados de inteligências artificiais ainda em processo de refinamento. Há um humor que não decola, feito de trocadilhos pobres como a confusão entre “Thailand” e “Taiwan”, o tipo de piada que talvez funcione num script automatizado, mas que no contexto humano soa mecânica e deslocada. Os personagens, especialmente os tailandeses, são mais avatares do que pessoas: esboços vazios, sem alma ou interioridade. O humor se perdeu, a sátira perdeu sua precisão afiada, e o que sobra é uma narrativa errática e embrutecida, como se já estivesse sendo roteirizada por um algoritmo pouco sensível às nuances humanas. Antes apreciada por sua concepção artística singular, White Lotus nessa última temporada acabou sucumbindo à cultura audiovisual por parâmetros estatísticos e padrões previsíveis. É um prenúncio inquietante do entretenimento sob domínio da IA: produtos eficientes, mas estéreis, completamente irrelevantes enquanto expressão cultural, incapazes de provocar riso verdadeiro, desconforto ou reflexão.

Charles Pontes Gomes – Pesquisador Fundação Casa de Rui Barbosa – [email protected]

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Last Update: 29/04/2025