Quando Israel deteve os primeiros combatentes do Hamas envolvidos nos ataques de 7 de outubro de 2023, passou a enviá-los para um local de detenção dentro de uma base militar chamada Sde Teiman, localizada no Deserto de Negev, perto da fronteira com a Faixa de Gaza.
Em pouco tempo, Sde Teiman se transformaria no mesmo tipo de inferno que os Estados Unidos criaram no passado para os detidos de sua “guerra ao terror”, em Guantánamo e Abu Ghraib: masmorras nas quais todo tipo de tortura é cometido. Não aguentando ver mais o que viam, alguns médicos israelenses passaram a denunciar publicamente casos de estupro de prisioneiros palestinos e de agressões tão graves que levaram à amputação das pernas de pelo menos dois prisioneiros feridos pelo uso sádico de algemas nos tornozelos.
As denúncias chegaram à Advocacia-Geral Militar, um órgão militar independente da cadeia de comando e subordinado a autoridades civis, cuja atribuição é investigar e punir crimes cometidos pelos próprios membros das IDF. No fim de julho, a chefe dessa instituição, Yifat Tomer-Yerushalmi – que em julho de 2021 havia se tornado a primeira mulher a ser nomeada para o cargo na história de Israel – deu ordens para que o equivalente israelense à Polícia do Exército entrasse em Sde Teiman e detivesse um grupo de nove militares acusados de envolvimento em um estupro tão brutal que chegou a deixar um prisioneiro palestino hospitalizado, sem poder caminhar.
Em 29 de julho, a Polícia do Exército tentou prender os nove envolvidos no caso, mas foi impedida por militares revoltosos que haviam erguido barricadas e usaram gás de pimenta para proteger seus colegas, repelindo a polícia e impedindo a ordem de detenção. Transmitido ao vivo nas redes sociais, o motim atraiu dezenas de manifestantes e até políticos da extrema-direita israelense, incluindo membros do gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que foram ao local para impedir ou criticar a ação da Justiça e proteger os violadores.
A Advocacia-Geral Militar de Israel investiga mais de cem casos de possíveis violações às leis da guerra por membros das IDF. Mas, como demonstra o episódio de Sde Teiman, não há consenso na sociedade israelense sobre condenar e prender membros das Forças Armadas no momento em que a guerra na Faixa de Gaza já passa dos 300 dias. Para muitos, não deve haver punição para crimes de guerra em Israel.
A questão é que Israel já está nos bancos dos réus por causa de uma acusação de genocídio movida pela África do Sul no Corte Internacional de Justiça. Além disso, Netanyahu e seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, são alvos de pedidos de prisão pelo procurador do Tribunal Penal Internacional. Ambos argumentam que o TPI não os alcançaria porque Israel não é um Estado-parte do Estatuto de Roma, que estabelece as bases para a ação desse tribunal. Este mesmo estatuto, contudo, permite a persecução penal de crimes cometidos em países que reconhecem sua jurisdição, como a Palestina. Além disso, Netanyahu e Gallant poderiam ser capturados se visitassem um país signatário disposto a prendê-los.
Entretanto, instâncias internacionais de julgamento de crimes de guerra, como o TPI, só podem assumir casos de um país específico se o Poder Judiciário desse país não puder ou não quiser julgá-los. A primazia para responsabilizar os envolvidos em crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de agressão é sempre do Estado ao qual o cidadão pertence. Se existe uma investigação doméstica em curso por esses motivos, isso pode impedir ou retardar a ação da Justiça internacional.
Netanyahu e Gallant não estão sendo julgados em Israel – até onde se sabe, seus nomes não constam nas mais de cem investigações em curso na Advocacia-Geral Militar. Portanto, isso não pode ser usado como argumento para frear o TPI. Além disso, no caso da acusação de genocídio, o julgamento é contra Israel como país, não contra indivíduos. Dessa forma, não há indícios de que as ações da Advocacia-Geral Militar tenham efeito imediato sobre os casos deles.
Ainda assim, a estratégia de abrir investigações na Justiça doméstica se presta a alguns fins, como sinalizar que haveria disposição nacional para punir os envolvidos, e que essas ações poderiam chegar ao topo da hierarquia política, dado que políticos um dia deixam o poder e, frequentemente, caem em desgraça.
Nesse sentido, Sde Teiman poderia servir como um termômetro para medir a temperatura na sociedade israelense na eventualidade de ela ter de lidar um dia, de verdade, com a responsabilização dos envolvidos em crimes de guerra, como manda a lei.