Quando a razão vira código: A racionalidade aprisionada

Por Reynaldo Aragon

Eles prometem conveniência, mas nos roubam a liberdade de hesitar. Sob a máscara da fluidez, algoritmos silenciam a dúvida, destroem a lentidão e transformam a razão em mercadoria preditiva. Este ensaio denuncia a captura da mente humana pelo regime técnico da fricção zero — e convoca à rebeldia de pensar.

Vivemos um tempo em que a razão, conquistada a duras lutas como promessa de emancipação humana, se encontra à beira do abismo. Um tempo em que algoritmos devoram o gesto de hesitar, dissolvem a chama da dúvida e reformulam o próprio ato de pensar. Sob a sedutora promessa da fluidez, uma nova gramática da técnica se impõe, reorganizando o mundo em fluxos previsíveis, otimizados, sem pausas, sem atrito — sem respiração.

A ideologia da fricção zero transformou a lentidão em falha, a complexidade em defeito, a ambiguidade em ruído. Nesse arranjo, toda mediação — inclusive a razão — converte-se em função automática, pilotada por engenharias algorítmicas que se oferecem como guardiãs do conforto, mas sequestram a práxis, a linguagem e o tempo.

Talvez nunca tenhamos estado tão próximos de perder a capacidade de escolher, de recusar, de duvidar. Pois a razão, esvaziada de seu caráter histórico e dialético, já não emerge do embate humano com a realidade, mas passa a ser antecipada, administrada, calculada em tempo real por metaintermediários invisíveis. A subjetividade se torna logística, e a vida — até na sua dor, na sua hesitação, na sua beleza de ser imperfeita — é convertida em sequência operacional de cliques, previsões e comandos.

Este ensaio nasce como uma recusa a esse destino. Como uma convocação a relembrar que a fricção — o tropeço, o erro, a incerteza — constitui a própria dignidade da razão. O que não hesita não pensa. O que não atrita não transforma. O que não se debate não se emancipa.

No coração desta crítica pulsa a certeza de que a técnica, longe de neutra, carrega sempre as marcas do poder que a produz. Se o capitalismo de plataforma a ergue como instrumento de captura, cabe a nós devolvê-la ao campo da liberdade, reinstalando a fricção como espaço ético, político e vital. Pois enquanto houver um sopro de negatividade, haverá razão viva — e, com ela, a possibilidade de recomeçar.

INTRODUÇÃO.

O que resta da razão em um mundo moldado pela velocidade? Esta pergunta, aparentemente simples, atravessa o presente como uma ferida exposta. Vivemos sob o domínio de sistemas algorítmicos que prometem eficiência, personalização e conforto, mas nos cobram em troca o preço mais alto: a renúncia ao ato de pensar como práxis, conflito e transformação.

A racionalidade, conquistada historicamente como espaço de mediação e autonomia, sofre hoje uma reprogramação silenciosa. Os algoritmos não apenas nos sugerem caminhos: eles passam a antecipar desejos, modelar decisões, traduzir afetos — convertendo a razão em fluxo automatizado, submetido à lógica do lucro e da previsibilidade. O que era deliberação vira resposta imediata; o que era hesitação vira falha sistêmica. A ideologia da fricção zero, ao suprimir todo obstáculo, converte a experiência humana em sequência contínua de confirmações, dissolvendo o dissenso e empobrecendo a linguagem.

Este ensaio parte de uma hipótese ousada: estamos assistindo à emergência de uma racionalidade algorítmica, estruturalmente alinhada ao capitalismo de plataforma, que submete a subjetividade a novos dispositivos de captura e transforma a própria possibilidade de existir em mercadoria preditiva. Ao eliminar a fricção — e com ela a dúvida, o erro, a controvérsia —, esse modelo reorganiza a vida como logística, reprogramando não apenas o que fazemos, mas o que podemos ser.

Propomos aqui uma análise que recusa a neutralidade técnica e encara os algoritmos como instrumentos de dominação travestidos de assistência. Sustentamos que o metaintermediário algorítmico — esse novo mediador invisível e antecipatório — não apenas ocupa o lugar da mediação, mas redefine a própria razão como função de interface, eliminando o campo da práxis e instaurando um regime de alienação ontotecnológica de segunda ordem.

Ao longo deste texto, reconstruiremos a genealogia da racionalidade moderna, examinaremos sua captura pela ideologia da fricção zero, e analisaremos as consequências éticas, políticas e epistêmicas dessa mutação. Por fim, apontaremos caminhos de resistência — uma ética da fricção, da lentidão, do erro — como trincheiras necessárias para recuperar a dignidade do pensamento crítico e a liberdade de hesitar.

O IDEAL HISTÓRICO DA RAZÃO.

A razão não nasceu pronta. Ela foi sendo forjada historicamente, em meio a lutas, revoluções e contradições. Do Iluminismo à modernidade crítica, construiu-se a noção de que a razão humana seria a arma contra a superstição, o dogma e a tirania — uma ferramenta de autonomia e emancipação. O ideal racional moderno, sustentado na clareza, na argumentação e na dúvida metódica, afirmou-se como horizonte civilizatório e, ao mesmo tempo, como promessa de libertação.

Mas a razão nunca esteve livre de cercos. Mesmo em sua formulação ilustrada, ela carregava marcas de classe, de colonialismo e de dominação. Ao longo do desenvolvimento do capitalismo, a racionalidade foi progressivamente instrumentalizada: transformada em cálculo, previsão, administração, eficiência. Tornou-se, como já apontava Max Horkheimer, uma razão técnica, adaptada às finalidades do capital, capaz de legitimar exploração sob a máscara da ordem e do progresso.

No pensamento marxista, a razão não se separa da práxis. É inseparável da transformação concreta das condições de existência, e não se reduz a especulação abstrata. Marx nos lembra que pensar é intervir, e que toda mediação racional reflete a infraestrutura de um modo de produção concreto. Assim, a razão carrega dentro de si a contradição: pode emancipar, mas também pode ser domesticada.

No coração desta disputa, sempre esteve a fricção: o momento de hesitar, de questionar, de debater. A lentidão do pensamento crítico, a recusa do automatismo, a defesa do erro como possibilidade de reinvenção — tudo isso constitui a gramática mais profunda da razão dialética. Por isso, eliminar a fricção significa golpear a própria dignidade do pensamento.

Se hoje algoritmos oferecem respostas instantâneas, eliminando mediações, neutralizando contradições e dissolvendo a negatividade, é porque disputam a própria função histórica da razão. O que está em jogo não é apenas a técnica, mas o sentido humano de existir.

O CAPITALISMO DE PLATAFORMA E A ASCENSÃO DA FRICÇÃO ZERO.

A ideologia da fricção zero não surgiu do nada. Ela brota no coração do capitalismo digital como uma síntese perfeita de seus imperativos: fluidez, eficiência, previsibilidade e captura integral da experiência. Desde os anos 1990, quando Bill Gates popularizou a ideia de um “capitalismo sem atrito”, a promessa de eliminar toda barreira entre desejo e consumo tornou-se mantra corporativo.

No início, a supressão da fricção era celebrada como conveniência: menos filas, menos etapas, menos burocracia. Mas à medida que a arquitetura algorítmica se sofisticou, essa supressão se transformou em projeto ontopolítico — um redesenho profundo da subjetividade, da linguagem e da agência. O que antes era obstáculo — a hesitação, o erro, a deliberação — passou a ser patologizado como falha sistêmica, ruído a ser eliminado do fluxo.

As plataformas digitais levaram essa racionalidade ao extremo. Amazon, Google, Meta, Apple e agora as inteligências artificiais generativas, buscam não apenas facilitar escolhas, mas antecipá-las, dissolvendo a experiência em interações previsíveis, automatizadas e emocionalmente programadas. O ideal da fluidez absoluta tornou-se, assim, o dispositivo central da dominação informacional: ao reduzir o mundo a cliques e confirmações, impede-se a construção de pensamento autônomo e apaga-se o espaço do dissenso.

A fricção zero, portanto, é muito mais que uma engenharia de usabilidade: é um projeto ideológico que reorganiza a vida segundo a métrica do capital. Ela desloca a política para o plano da infraestrutura técnica, naturalizando a submissão, disfarçando-a de liberdade, e esvaziando as possibilidades de reinvenção social.

Sob o signo da fricção zero, a sociedade se converte em logística, e o humano em dado circulante, pronto para ser monetizado. Esta é a face mais perigosa do capitalismo de plataforma: transformar a vida em interface, e a subjetividade em perfil preditivo.

O METAINTERMEDIÁRIO ALGORÍTMICO: A RAZÃO AUTOMATIZADA.

No ápice da racionalidade algorítmica, emerge o metaintermediário: uma forma radical de mediação automatizada, capaz de antecipar, decidir e organizar a realidade antes mesmo que o sujeito a formule como demanda consciente. Diferentemente das interfaces gráficas ou motores de busca do passado, o metaintermediário não apenas conecta informações — ele interpreta, sugere, sintetiza, age em nome do usuário, dissolvendo a autonomia e sequestrando a deliberação.

Ao ocupar a função tradicional da mediação, o metaintermediário reconfigura a própria razão como um processo técnico, padronizado, invisível e integrado. As decisões deixam de ser construídas no espaço público ou na linguagem compartilhada, e passam a ser moldadas no interior de um circuito fechado de dados, comandos e previsões. O resultado não é apenas uma perda de liberdade de escolha, mas uma erosão ontológica: a razão deixa de ser práxis histórica, dialética e contraditória, para tornar-se algoritmo de performance e adequação.

Este deslocamento implica uma alienação de segunda ordem, mais profunda do que a simples reificação do trabalho ou do consumo. O sujeito passa a ser administrado também em sua interioridade, pois os metaintermediários recolhem desejos, antecipam hesitações, monitoram afetos e constroem rotinas emocionais modeladas pela previsibilidade. A dúvida se converte em falha de sistema, e a linguagem em interface funcional.

A razão, nesse contexto, é tornada fluxo contínuo de respostas, capturada por uma ontotecnologia que transforma o pensar em cálculo e o decidir em confirmação automatizada. O metaintermediário, assim, realiza o programa da fricção zero em sua forma mais acabada: elimina a política da linguagem, anula a lentidão do pensamento e converte a subjetividade em logística comportamental.

A ALIENAÇÃO DE SEGUNDA ORDEM.

Alienação, na tradição marxista, significa a perda do controle sobre os próprios processos de criação, produção e existência. Mas no capitalismo digital, essa alienação avança para um novo patamar: já não se limita à expropriação do trabalho ou do produto, mas invade o território mais íntimo da subjetividade. O metaintermediário algorítmico não apenas organiza a ação do sujeito — ele molda sua própria capacidade de desejar, pensar, sentir e decidir.

Chamamos de alienação de segunda ordem esta forma superior de colonização ontológica, na qual o sujeito é esvaziado de sua potência de negação e transformação. Ao delegar continuamente suas decisões a sistemas automáticos, o indivíduo se adapta à lógica da fluidez, internaliza a positividade tóxica e perde a capacidade de hesitar. O conflito vira anomalia, o erro é suprimido, e a linguagem, reduzida a comandos pré-formatados, deixa de ser espaço de crítica para tornar-se superfície de confirmação.

Este processo dissolve o tempo da práxis — aquele intervalo necessário entre o impulso e a ação, onde floresce a reflexão, a imaginação histórica, a recusa ao dado — e o substitui por um tempo de resposta imediata. Assim, o metaintermediário constrói uma subjetividade dócil, afinada com a reprodução do capital, que vive num presente contínuo de satisfações programadas.

A alienação de segunda ordem, portanto, não nos expropria apenas dos meios de produção materiais, mas também dos meios de produção do próprio pensamento. O que se perde não é só a liberdade de agir, mas a própria possibilidade de existir em tempo próprio. É a negação radical da negatividade — condição essencial para toda emancipação.

A EPISTEMOLOGIA DA FLUIDEZ.

A ideologia da fricção zero, ao se tornar hegemônica, impõe também uma nova forma de conhecer: uma epistemologia da fluidez. Neste paradigma, o valor máximo não está na crítica, no debate ou na construção coletiva de sentidos, mas na velocidade, na leveza e na eficiência. O conhecimento deixa de ser processo para tornar-se produto: rápido, segmentado, personalizado, consumível.

Essa epistemologia dissolve o espaço do dissenso ao converter o pensamento em confirmação, a linguagem em interface, e o erro em falha de sistema. Ao priorizar a continuidade e a previsibilidade, ela retira do campo epistêmico as ambiguidades, as contradições e as zonas cinzentas que sempre alimentaram a invenção, a descoberta, a imaginação. O resultado é um ambiente cognitivo domesticado, onde o saber serve ao lucro e ao controle, e não mais à libertação.

Sob este regime, a verdade já não se constrói a partir de múltiplas vozes, mas é modelada por filtros algorítmicos que reforçam vieses, confirmam preconceitos e modulam afetos. O pensamento crítico, que exige tempo, conflito e hesitação, torna-se disfuncional frente à lógica da fluidez total.

A epistemologia da fluidez, assim, não é neutra: ela organiza a própria experiência de mundo como logística, eliminando a fricção enquanto horizonte ético e político. Desse modo, transforma o ato de conhecer em ato de consumo, e o sujeito em consumidor de respostas prontas.

CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS E ÉTICAS.

As transformações promovidas pela ideologia da fricção zero e pela racionalidade algorítmica não se limitam ao plano técnico ou cognitivo: elas repercutem profundamente na organização política e ética das sociedades. Ao automatizar a mediação, suprimir o conflito e dissolver a dúvida, os sistemas algorítmicos enfraquecem os fundamentos da democracia, que dependem justamente da lentidão do debate, da pluralidade de vozes, da controvérsia e da construção compartilhada do dissenso.

Quando a deliberação coletiva é substituída pela antecipação algorítmica, o espaço público perde sua vitalidade e se torna mera vitrine de decisões pré-formatadas. O sujeito, capturado por mecanismos de personalização extrema, tende a se fechar em bolhas cognitivas, onde não há confronto de ideias, apenas o eco de suas próprias crenças reforçadas pela curadoria técnica. Assim, a esfera política se esvazia, transformada em fluxo contínuo de confirmações.

No Sul Global, esse processo assume contornos ainda mais graves, pois se combina a dinâmicas históricas de colonialismo cognitivo e dependência tecnológica. Ao importar modelos algorítmicos treinados em contextos culturais e valores alheios, sociedades periféricas podem ver suas linguagens, afetos e modos de vida recodificados por infraestruturas técnicas que reproduzem interesses estrangeiros, aprofundando a subordinação epistêmica.

Do ponto de vista ético, a supressão da fricção mina a própria possibilidade de agir livremente. O erro, a hesitação e o conflito são dimensões constitutivas da autonomia moral — sem elas, resta apenas a obediência maquinal às rotinas programadas. Uma sociedade sem fricção é, em última instância, uma sociedade sem liberdade.

ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA.

Diante da captura da razão pela fluidez algorítmica e da alienação de segunda ordem que se instala, resta-nos perguntar: como resistir? A resposta passa por recuperar a fricção como horizonte ético, político e cognitivo. Reinstalar a fricção significa reabilitar o tempo da hesitação, do erro, do conflito, como condições fundamentais da liberdade e da práxis transformadora.

No campo técnico, isso implica lutar por tecnodiversidade — sistemas que respeitem a pluralidade de valores, linguagens e modos de vida, rompendo com a hegemonia dos algoritmos treinados para a obediência e o consumo. Implica também reivindicar soberania cognitiva, assegurando que comunidades possam governar suas próprias infraestruturas de dados, protegendo a autonomia de decidir, filtrar, escolher.

No plano cultural e educativo, torna-se urgente defender o letramento crítico como trincheira pedagógica contra a naturalização da fluidez. Educar para hesitar, para interrogar, para interpretar — contra a colonização da subjetividade pelas interfaces. Recuperar a negatividade como potência criativa, pois só onde há recusa pode nascer o novo.

Por fim, no plano político, a resistência exige redesenhar a regulação das tecnologias, baseando-a em princípios de justiça social, pluralidade e controle democrático. A técnica não é neutra — logo, sua disputa não pode ser neutra. A defesa da fricção é, nesse sentido, a defesa de um espaço vivo para a política, onde a linguagem possa se reabrir ao inacabado, ao contraditório, ao inesperado.

Resistir, enfim, não é apenas dizer não às máquinas, mas lembrar que somos mais do que máquinas. Que a dignidade da razão habita no tropeço, na dúvida, no erro — pois é ali que a liberdade encontra solo fértil para germinar.

CONCLUSÃO.

Chegamos, assim, ao cerne de nossa hipótese: a racionalidade, historicamente construída como instrumento de emancipação, está hoje sob ataque silencioso, reformulada pelos algoritmos que promovem a ideologia da fricção zero. Ao transformar a dúvida em falha, o erro em ruído e a deliberação em atraso, esses sistemas capturam a própria possibilidade de existir em tempo próprio.

O metaintermediário algorítmico — síntese máxima desse projeto — converte a razão em fluxo automatizado, anula a práxis e dissolve o espaço do dissenso, instaurando uma alienação de segunda ordem que reprograma afetos, desejos e decisões sem passar pela linguagem partilhada. Nessa reorganização ontotecnológica da vida, a subjetividade deixa de ser campo de invenção e se torna logística, previsível, rentável.

Mas há brechas. Enquanto existir a potência de hesitar, de tropeçar, de resistir ao fluxo, haverá horizonte para reconstruir a razão como espaço de liberdade. Recuperar a fricção — como lentidão, como conflito, como negatividade — não é retroceder, mas avançar no resgate de uma autonomia historicamente conquistada e duramente ameaçada.

Este ensaio, no fundo, quer ser um convite: a recusar o canto suave das máquinas que nos prometem conforto em troca da nossa dignidade. A lembrar que só onde a linguagem se abre ao inesperado, ao contraditório, ao incômodo, é que podemos continuar humanos. Pois a razão viva não se curva ao algoritmo — ela hesita, interroga, se reinventa, e, assim, permanece capaz de mudar o mundo.

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.

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Last Update: 29/06/2025