Nos anos 60 e 70, em tempos de ditadura, a esquerda latino-americana foi a principal beneficiada pelos institutos de proteção internacional, como asilo diplomático e territorial. Agora, em democracia, governos de esquerda, como o de Hugo Chávez, na Venezuela, e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, são provocados por opositores de direita e de extrema-direita que recorrem a esses mesmos institutos de proteção internacional, alegando perseguição.
No caso venezuelano, Edmundo González, um ex-diplomata sem grande expressão política, se refugiou na embaixada da Espanha, após um mês incógnito na embaixada dos Países Baixos. Ele acabou herdando a condição de candidato presidencial da oposição depois de a eminência parda do setor, Maria Corina Machado, ter sido proibida de concorrer.
Maduro diz ter vencido a eleição de 28 de julho, mas não apresentou as atas que poderiam dirimir as dúvidas sobre o resultado. Corina e seu preposto, obviamente, contestam e, para sustentar seus argumentos, publicaram o que seriam atas com resultados parciais – e que comprovariam a vitória da oposição.
Depois de proclamar a vitória de Maduro e ignorar a cobrança por transparência que vinha sendo feita até mesmo por fiadores leais, como os governos do Brasil e da Colômbia, a Justiça venezuelana partiu para cima de González, emitindo uma ordem de prisão contra ele. O argumento de Maduro e da Justiça venezuelana – que, em muitos momentos, se confundem – é de que ele usurpou funções do tribunal eleitoral local ao divulgar as atas parciais, que a Justiça venezuelana classificou como falsas.
González adentrou a Embaixada dos Países Baixos em Caracas já no dia seguinte à eleição. Esteve lá por mais de um mês, sem que seu paradeiro fosse conhecido. Finalmente, no sábado 7, ele passou para o imóvel ao lado, que corresponde à embaixada da Espanha, e, após receber um salvo-conduto do governo venezuelano para deixar o país, embarcou em segurança para Madri. Maduro autorizou a saída, mas demonstrou contrariedade com o fato de ele ter se escondido na sede diplomática holandesa.
A ‘hospitalidade’ dada pela Hungria a Bolsonaro e pelos Países Baixos a González evita o embaraço diplomático de conceder asilo formal
Enquanto os espanhóis falam abertamente em refúgio, os holandeses dizem ter “concedido hospitalidade” a González. O eufemismo foi o mesmo usado pela embaixada da Hungria em Brasília, quando recebeu o ex-presidente Jair Bolsonaro, durante dois dias, no mês de fevereiro. Edmundo González ainda não tinha contra si uma ordem de prisão quando adentrou na embaixada dos Países Baixos, o que só viria a acontecer mais tarde, confirmando seus fundados temores de perseguição. Bolsonaro, por sua vez, havia cumprido ordem de entregar seu passaporte quatro dias antes de tentar na embaixada da Hungria, e temia que uma ordem de prisão contra si estivesse a caminho, o que não aconteceu – ao menos até agora.
A ‘hospitalidade’ dada pela Hungria a Bolsonaro e pelos Países Baixos a González evita o embaraço diplomático de conceder asilo formal, o que significaria uma declaração implícita de desconfiança nos sistemas judiciais da Venezuela e do Brasil.
Asilo é assunto bem regulado na região por quatro documentos internacionais: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e a Convenção sobre Asilo Diplomático de 1954. Esses episódios expõem, contudo, uma nova faceta da busca e da concessão do benefício.
No Brasil, há um movimento deliberado do bolsonarismo para ativar os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos — antes vistos como um recurso exclusivo da esquerda. Jair Bolsonaro, que chegou a chamar os direitos humanos de “esterco da vagabundagem”, mudou de postura quando sua própria base política passou a enfrentar pressão jurídica, especialmente após as consequências do fracassado golpe de Estado no 8 de Janeiro. Foi nesse contexto que o bolsonarismo, descobrindo tardiamente a utilidade desses mecanismos, decidiu subvertê-lo de forma oportunista em benefício próprio.
Outro desafio é determinar se o solicitante está de fato fugindo de perseguição política ou se, ao contrário, usa esse argumento apenas para se esquivar das consequências jurídicas de crimes comuns que tenha praticado em seu país.
Tanto González quanto Bolsonaro contestam os resultados eleitorais. No entanto, há uma diferença fundamental: no Brasil, o bolsonarismo vai às ruas, protesta contra o Supremo, propõe anistia aos envolvidos no 8/1, vai ao Congresso dos EUA denunciar uma “ditadura do Judiciário”, lança candidatos, concorre e vence eleições — tudo isso sem que seus membros enfrentem risco de vida. O mesmo não pode ser dito da Venezuela, onde a fatura da contestação a Maduro tornou-se tão alta que só pode ser quitada por quem consegue asilo no exterior.