Quando a nacionalidade se transforma em instrumento de exclusão, por Dora Nassif

Quando a nacionalidade se transforma em instrumento de exclusão

por Dora Nassif

O Congresso Nacional avança mais um passo na consolidação de uma política de Estado fundada na desconfiança, na exclusão e na criminalização dos povos indígenas. Após o marco temporal tentar fixar no tempo a legitimidade da ocupação indígena, a Câmara dos Deputados agora busca restringir quem pode ser reconhecido como indígena brasileiro. A aprovação, na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, do Projeto de Lei nº 4.740/2024 revela uma lógica que já não se disfarça: o direito indígena passou a ser tratado como ameaça à soberania nacional.

O projeto altera o Estatuto do Índio para estabelecer critérios rígidos para o reconhecimento da nacionalidade brasileira a indígenas, especialmente em regiões de fronteira. Na prática, cria-se um procedimento de filtragem administrativa que submete o indígena à verificação de vínculos territoriais com terras já demarcadas, à validação por terceiros da comunidade e da região e, ainda, ao escrutínio de registros criminais e migratórios. Caso essas etapas não sejam cumpridas, o próprio agente público pode ser responsabilizado criminalmente.

A justificativa apresentada pelo autor do projeto é reveladora. Parte-se da premissa de que indígenas oriundos de países vizinhos estariam atravessando a fronteira para se autodeclarar indígenas brasileiros, acessar políticas públicas, obter certidões de nascimento e, sobretudo, influenciar processos de demarcação de terras. A narrativa é repetida com insistência: fala-se em “fast track” para a nacionalidade, em “baderna”, em invasões violentas e em um suposto uso indevido da legislação indigenista para fraudar o Estado brasileiro.

O problema não está apenas na ausência de dados empíricos que sustentem essa generalização, mas no pressuposto que a orienta. Povos indígenas passam a ser vistos como sujeitos suspeitos por definição. A mobilidade histórica entre territórios, anterior à formação dos Estados nacionais, é reinterpretada como fraude. A identidade indígena deixa de ser reconhecida como um direito originário e passa a depender da validação estatal, policial e burocrática.

Ao exigir que o vínculo territorial seja comprovado com base em terras já demarcadas, o projeto produz uma inversão perversa: transforma a omissão histórica do Estado brasileiro, que demorou décadas para demarcar terras indígenas, em critério de exclusão de direitos. Comunidades que foram expulsas, removidas ou forçadas a circular entre territórios hoje separados por fronteiras internacionais são penalizadas duas vezes: primeiro pela violência colonial, depois pela negativa de reconhecimento jurídico.

O discurso da soberania nacional, tão mobilizado pelos defensores do projeto, revela-se profundamente contraditório. Em nome da defesa do território, fragiliza-se o próprio pacto constitucional de 1988, que reconheceu aos povos indígenas direitos originários, anteriores à formação do Estado. Ao submeter esses direitos a critérios administrativos e a uma lógica de controle migratório, o legislador reescreve a Constituição por via infralegal, exatamente como tentou fazer com o marco temporal.

Há, aqui, uma coerência política que precisa ser nomeada. Primeiro, restringe-se o tempo legítimo da ocupação indígena. Agora, restringe-se quem pode ser considerado indígena brasileiro. Em ambos os casos, o objetivo é o mesmo: reduzir direitos, conter territórios e disciplinar existências que sempre desafiaram a lógica colonial do Estado-nação.

O que se apresenta como técnica jurídica é, na verdade, escolha política. Decide-se quem pertence, quem pode acessar direitos e quem será lançado à condição de estrangeiro dentro do próprio território ancestral. A nacionalidade, que deveria ser instrumento de proteção, transforma-se em fronteira. A cidadania, em mecanismo de exclusão.

A história recente do Brasil mostra que esse caminho não produz segurança jurídica, mas conflito permanente. Não há estabilidade possível quando o direito é mobilizado para negar a própria história. Não há soberania real quando o Estado escolhe enfrentar aqueles que sempre habitaram o território que ele hoje reivindica como seu.

Ao insistir em transformar exceções coloniais em regra jurídica, o Congresso não protege o Estado brasileiro. Apenas aprofunda sua dívida histórica e reafirma, mais uma vez, o absurdo como política de Estado.

Dora Nassif – Advogada, Mestra em Direitos Humanos e Doutoranda em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide, em Sevilla.

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