Soberania Digital e Endereçamento IP: Quando a Internet Precisa Ter Nacionalidade
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
A internet foi concebida como uma rede técnica global, mas nunca como uma infraestrutura soberana. Ao contrário da telefonia, da energia elétrica, do território físico ou da moeda, o endereçamento da internet jamais foi organizado segundo critérios de nacionalidade. Essa escolha histórica criou um paradoxo grave: Estados continuam juridicamente responsáveis por tudo o que acontece dentro de seus territórios, mas não controlam a infraestrutura básica por onde circulam seus dados, suas transações financeiras e até os seus serviços públicos.
Atualmente, os blocos de endereços IP usados por cada país dependem, em última instância, das decisões de entidades privadas internacionais que mantêm as tabelas globais de validade dos endereços. Isso significa que, em termos estritamente técnicos, se um dia esses organismos decidirem invalidar os blocos utilizados pelo Brasil, o país simplesmente para. Bancos param, meios de pagamento param, semáforos param, hospitais são afetados, sistemas públicos entram em colapso. É uma forma de aniquilação econômica sem explosivos, embutida na própria arquitetura da rede.
A proposta de reorganizar o endereçamento mundial seguindo o modelo da telefonia, por prefixos nacionais, resolve essa fragilidade estrutural. Assim como todo número brasileiro começa com cinquenta e cinco, todo endereço IP brasileiro passaria a começar com cinquenta e cinco; todo endereço francês, com trinta e três; todo endereço dos Estados Unidos, com um; e assim sucessivamente. O primeiro bloco do endereço se tornaria um indicador de nacionalidade tão claro quanto o DDI telefônico. Cada país administraria internamente todos os seus endereços, sem depender de autorização de nenhuma entidade estrangeira.
E aqui entra um ponto decisivo: o IPv6 tem capacidade de sobra para isso — e ainda sobra espaço até mesmo para países com populações gigantescas, como a China. Enquanto todo o universo do IPv4 cabe dentro de um número de dez algarismos, o espaço completo do IPv6 cabe dentro de um número de trinta e nove algarismos. A diferença entre dez e trinta e nove dígitos é a diferença entre uma bacia e um oceano. Mesmo que cada cidadão tivesse bilhões de endereços próprios, ainda assim sobraria espaço. Não existe escassez possível nesse modelo.
Nesse sistema de prefixo nacional, a internet deixaria de ser uma nuvem sem território e passaria a ser uma federação de redes nacionais interligadas. O roteamento internacional funcionaria como a telefonia internacional: primeiro o tráfego iria para o país certo; depois, cada país resolveria tudo dentro de casa. A soberania digital deixaria de ser um discurso jurídico frágil e passaria a ser uma propriedade material da rede.
Esse modelo também resolveria um dos maiores conflitos contemporâneos entre Estados e grandes plataformas digitais: a atuação de empresas estrangeiras dentro dos países sem submissão às leis locais. Hoje, uma empresa pode operar no Brasil sem registro, sem pagar impostos proporcionais à sua atividade, sem cumprir decisões judiciais e sem responder civilmente por seus atos, alegando que seus servidores estão fora do território nacional. Isso só é possível porque o endereço IP não carrega nacionalidade de forma obrigatória.
Com o prefixo nacional, esse problema simplesmente desaparece. O roteador brasileiro só permitiria o acesso de plataformas estrangeiras que estivessem formalmente registradas no país. Seria o equivalente digital da exigência de CNPJ. Quem quisesse operar no Brasil teria de parecer brasileiro na camada do endereço. Nenhuma empresa conseguiria atuar “por cima” do Estado, escondendo-se atrás de servidores no exterior.
As chamadas redes privadas virtuais, as conhecidas VPNs, também perderiam completamente o efeito mascarador de geolocalização. Hoje, uma VPN permite que um terminal no Brasil pareça estar em outro país. No modelo de prefixo nacional obrigatório, isso se tornaria tecnicamente inviável. Um dispositivo localizado no Brasil só poderia sair para o exterior com um endereço iniciado por cinquenta e cinco. Ele não poderia fingir que pertence à França, assim como um telefone brasileiro não consegue fingir que seu código é trinta e três. A geolocalização passaria a ser infalsificável.
Esse princípio se torna ainda mais decisivo no caso da internet via satélite. Hoje, fornecedores de internet por satélite operam com endereços que muitas vezes não pertencem ao país onde a antena está fisicamente instalada. Isso cria uma porta lateral por onde a soberania digital escorre. Dados nacionais saem do país sem controle, decisões judiciais são contornadas e plataformas operam fora da jurisdição real do Estado.
No modelo de soberania por prefixo nacional, a regra seria simples: todo dispositivo dentro do território brasileiro só pode funcionar com endereço iniciado por cinquenta e cinco. Isso vale para fibra, rádio, telefonia móvel e também para satélite. O fornecedor teria duas opções: aceitar operar com endereçamento brasileiro, registrando-se formalmente no país e submetendo-se à legislação nacional; ou continuar usando endereços estrangeiros e, nesse caso, o usuário até pode ter antena apontada para o céu, mas não consegue realizar nenhuma transação local. Bancos rejeitam, sistemas públicos rejeitam, comércio digital rejeita. Ou o endereço da antena é local, ou o usuário fica digitalmente isolado dentro do próprio país.
Por fim, existe a consequência estratégica mais profunda dessa proposta. No modelo atual da internet, basta um ato administrativo externo para um país inteiro ser desligado digitalmente de forma simultânea e generalizada. No modelo de prefixo nacional, isso se torna impossível. Nenhum país pode ser bloqueado por todos os demais ao mesmo tempo, porque não existe uma autoridade técnica central com esse poder. Qualquer bloqueio passa a ser, necessariamente, bilateral ou multilateral parcial, jamais universal.
Se um país decidir romper relações digitais com o Brasil, esse será um conflito entre dois Estados, como sempre foi na história da diplomacia. Mas o restante do mundo continua acessível. E, sobretudo, a rede interna continua funcionando normalmente: bancos, semáforos, hospitais, governo, comércio, serviços públicos. O país pode até sofrer restrições externas pontuais, mas jamais será desligado do próprio funcionamento digital.
A soberania digital, portanto, não se constrói apenas com leis, discursos ou disputas judiciais. Ela se constrói na arquitetura da rede. Quando o endereço carrega a nacionalidade, a soberania deixa de ser um pedido e passa a ser um fato técnico.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Affairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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