Qual deles?

por Felipe Bueno

Caso você tenha se dado conta antes, em algum momento desde o início da onda Ainda Estou Aqui, perdoe-me pela redundância, mas é preciso insistir: o Brasil de Walter e Fernanda não é… o Brasil.

O Brasil de Walter e Fernanda é um país insatisfeito com as décadas de silêncio e omissão das Forças Armadas e dos governos democraticamente eleitos sobre o que aconteceu com os desaparecidos pós-1964. Vieram os presidentes civis, mas não veio em letras garrafais aquilo para que inclusive se construiu, destruiu e reconstruiu uma comissão oficial: a verdade.

E, se desde 1985 ainda há perguntas em aberto e pessoas e instituições que ocultam as respostas, num país alegadamente regido pela democracia e pelo Estado de Direito, convenhamos, tem algum Brasil aí que não gosta e não pretende abrir arquivos, gavetas e documentos para deixar esse passado descansar em paz.

Não à toa, filhos, netos e viúvas do período verde-oliva tiveram pouco o que celebrar na noite de 2 de março; talvez a não-vitória de Fernanda Torres, que acabou se tornando com justiça a personificação do filme e, por consequência, da história que ele conta.

(Aqui no meu bairro, fui informado sobre a vitória de Ainda Estou Aqui no Oscar por alguns minutos de gritaria e aplausos na vizinhança; um dos privilégios da vida é poder escolher onde morar.)

Paulo Prado viu no brasileiro pouco mais que uma massa triste e incapaz de se realizar enquanto povo; Sérgio Buarque de Holanda resumiu nossa alma na figura do homem cordial, que até hoje muita gente pensa ser um elogio; Roberto Schwarz detectou o desencaixe do pensamento importado que chegava aqui como uma versão filosófica da quadratura do círculo, que ele definiu como “as ideias fora do lugar”. O que esses e muitos outros e outras colocaram no papel, o tempo e as condições climáticas, sócio-econômicas e políticas trataram de moldar e catalisar: somos um peculiar estudo de caso da humanidade, com luzes e sombras. E há momentos, cada vez mais frequentes, em que o sol e o calor marcam suas presenças com intensidade, mas a luz, estranhamente, não se manifesta.

Ainda recorrendo a Sérgio Buarque, talvez possamos definir o Brasil de Walter, Fernanda e tantos – mas não em número suficiente para otimismo – como eternos “desterrados em nossa terra”.

Música, literatura, cinema e mais: a História tem guardado a relevância do Brasil como nação naturalmente geradora de soft power. Mas até mesmo ela, a História, sábia e imortal, se confunde com tanta gente ao mesmo tempo querendo preservá-la, ignorá-la e recontá-la.

Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.

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Last Update: 10/03/2025