Nos últimos anos, a ciência tem jogado luz sobre as propriedades terapêuticas dos cogumelos psicodélicos, especialmente os do gênero Psilocybe cubensis. Estudos revelam que a psilocibina, composto ativo nesses fungos, tem um potencial transformador no tratamento de condições como depressão, ansiedade e dependência química. Por que, então, a política de drogas no Brasil ainda classifica essa substância como perigosa e de alto potencial de abuso?
Diante desta contradição, entidades como o Instituto Micélio Sagrado (IMS) têm conduzido pesquisas que desafiam o status quo. Uma delas, publicada no International Journal of Medicinal Mushrooms, os pesquisadores analisaram dados de 112.451 ocorrências de eventos adversos relacionados ao uso de substâncias entre 2007 e 2022. O álcool liderou disparado o ranking de internações e mortes, seguido por drogas como cocaína e medicamentos anticonvulsivantes. Já os cogumelos psicodélicos? Apenas 13 registros em 15 anos.
Além disso, nenhum dos casos resultou em sequelas permanentes ou mortes. “Não há registros de pessoas viciadas em psilocibina”, destaca Marcel Nogueira, farmacêutico clínico e chefe do núcleo de pesquisas do IMS. Apesar disso, a Anvisa mantém a substância na lista de drogas proibidas, alimentando o estigma e barrando avanços médicos e científicos.
O estudo do IMS ganha ainda mais relevância diante do atual crescimento do uso dos chamados ‘cogumelos mágicos’ no Brasil. O aumento do volume de buscas e a oferta de serviços na internet e nas redes sociais sugerem que esse composto psicodélico, com uma longa história de uso tradicional — especialmente entre povos indígenas do México —, vem atraindo um número crescente de adeptos no país. Seu uso tem se destacado, principalmente, em contextos rituais e em práticas voltadas ao desenvolvimento pessoal, bem-estar e saúde mental.
Uma busca rápida no Google pelo termo ‘comprar cogumelos mágicos’ retorna cerca de 7.630 resultados, incluindo empresas que comercializam o produto. Muitas delas possuem CNPJs registrados e emitem nota fiscal, sendo que algumas atuam regularmente no mercado desde a década de 1990.
Enquanto líderes religiosos enfrentam perseguições, o mercado paralelo floresce
A falta de regulamentação, contudo, cria um cenário de insegurança jurídica. Cultivadores, líderes de rituais e até mesmo usuários terapêuticos enfrentam perseguições policiais arbitrárias. Embora o corpo dos fungos não seja explicitamente proibido pela Lei de Drogas, instâncias policiais frequentemente tratam o cultivo como tráfico.
A confusão legal gera um ciclo prejudicial: repressão policial, criminalização do cultivo e o reforço de preconceitos contra práticas culturais e espirituais legítimas. “O resultado tem sido uma repressão abusiva e a prisão arbitrária de dezenas de cultivadores, que permanecem sem amparo legal”, explica Daniel Rodrigues, jurista e conselheiro do IMS. Enquanto isso, países como Austrália e estados americanos como Oregon avançam na regulamentação do uso terapêutico e cerimonial da psilocibina.
O cenário é de flagrante desigualdade, aponta Rodrigues, evocando a diferença entre o tratamento dado aos cogumelos e à ayahuasca – que também tem uso ritual e é regulamentada desde 2010 por uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, o Conad. “As moléculas são quase idênticas”, ressalta.
Em um artigo recente, escrito em coautoria com os advogados Demóstenes Torres e Caio Alcântara Martins, o pesquisador do IMS analisou o tema em profundidade, destacando a atipicidade legal dos cogumelos. “Mesmo assim, ainda há prisões arbitrárias de fungicultores”, lamenta.
O jurista argumenta que, sob a ótica do livre mercado, na ausência de regulamentação específica ou proibição expressa da venda, os direitos dos cultivadores estão amparados tanto pelo princípio constitucional da livre iniciativa (artigo 170 da Constituição) quanto pela Lei de Liberdade Econômica (artigo 3º, inciso V, da Lei n.º 13.874/2019).
Rodrigues conclui que, como a Lei de Drogas não proíbe explicitamente os fungos, os cultivadores têm o direito de operar no mercado sob a presunção de boa-fé, devendo estar livres de abusos regulatórios, exceto em casos de proibição legal claramente estabelecida.