Jornadas de trabalho excessivas reduzem a produtividade e costumam deixar trabalhadores e trabalhadoras doentes. A escala 6×1, amplamente utilizada em diversos setores e ramos da economia (com destaque para o comércio), tem sido alvo de debates crescentes a respeito de seu impacto na saúde mental dos trabalhadores.
Muito além do desgaste físico, as longas jornadas e a redução do tempo de descanso podem ter consequências psicológicas profundas a longo prazo.
Segundo um levantamento feito pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) em 2022, 65,8% dos trabalhadores brasileiros formais atuam seis dias por semana, sendo que 82% recebem menos de dois salários mínimos.
Marcos Torati – Reprodução
“Na teoria, o trabalho deveria ser uma fonte de satisfação e prazer, mas, na prática, a sociedade é dividida entre aqueles que mandam, pensam, concebem, inventam e os que obedecem e executam ordens. Se determinadas atividades laborais fossem tão toleráveis e desejáveis assim, os seres humanos não teriam inventado a estrutura de classes, a exploração de mão de obra, a escravidão e a robotização”, explica Marcos Torati, psicólogo, professor e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
Trabalho alienado
É importante distinguir o trabalho motivado pelo desejo daquele impulsionado pela submissão, o trabalho heterônomo (para um patrão), que o filósofo alemão Karl Marx caracterizou como trabalho alienado. Figuras históricas como Marx, Freud, Marie Curie, e Da Vinci dedicaram-se intensamente ao trabalho, encontrando nele uma forma de expressão pessoal.
“Tais trabalhadores eram automotivados, pois, antes de tudo, eram pessoas que encontravam um sentido íntimo em suas atividades profissionais e, por isso, sentiam menos os efeitos das atividades laborais. No entanto, para muitos trabalhadores, a escala 6×1 representa uma realidade imposta pela necessidade de sobrevivência, desprovida de significado e autonomia”, comenta o psicólogo.
Dessa forma, trabalhar seis dias como um exercício da própria vontade pessoal é uma experiência absolutamente diferente de se sujeitar mecanicamente a esse ritmo por puro medo do desemprego e necessidade de sobrevivência. “Isso pode explicar por que muitos jovens preferem o desemprego a trabalhos desprovidos de significado”, explica Torati.
Qual a jornada de trabalho ideal?
A palavra “trabalho” deriva do latim “tripalium”, um instrumento romano de tortura. Essa etimologia, infelizmente, reflete a experiência de muitos trabalhadores que se sentem aprisionados em rotinas castigantes e desmotivadoras.
A escala 6×1 exige uma reflexão sobre a organização do trabalho e o valor do tempo livre. É preciso questionar a cultura de produtividade a qualquer custo e defender a importância do descanso e do lazer para a saúde mental dos trabalhadores. Afinal, o trabalho deve ser um meio de vida e não um fim em si mesmo.
“Em termos ideais, creio que a sugestão do filósofo Robert Owen seja proveitosa: 8 horas para trabalhar, 8 horas para dormir e 8 horas para o lazer. Porém, o tempo de deslocamento e a jornada de trabalho em casa podem tomar boa parte do tempo dedicado ao sono e lazer, o que para muitos trabalhadores desequilibra a balança”
Uma pesquisa encomendada pelo Serasa Experian, em 2024, mostra que 8 em cada 10 trabalhadores do país consideram ou já tomaram medidas para reduzir o tempo de deslocamento para o trabalho. Ou seja, isso evidencia que, especialmente em grandes metrópoles, o tempo de ida e volta é um fator que faz parte das reflexões dos trabalhadores.
Saúde
“Nesse cenário, a minha preocupação com a saúde dos cidadãos é se a redução da jornada de 6×1 e se a regulamentação da jornada de trabalho será o bastante para que os indivíduos trabalhem menos e aproveitem mais a vida. Pois, se, por um lado, as legislações ajudam a minimizar a exploração das empresas em relação ao trabalhador, por outro, o mesmo pode continuar trabalhando, buscando novas formas para complementar sua renda de forma autônoma nas horas livres recém adicionadas”, comenta Torati.
Esse fenômeno apontado pelo psicólogo é reforçado pela uberização do trabalho, assim como pela busca por uma remuneração digna. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, em 2022, 1,5 milhão de brasileiros trabalhavam por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviço.
“Sem dúvida, é necessário conscientizar e estabelecer recomendações que humanizem a relação com o trabalho, mas, então, questiono: por que as pessoas ainda assim continuam trabalhando excessivamente? Em última análise, se todo excesso esconde uma falta, o que a compulsão a repetição deste sintoma nos exige realmente refletir sobre nós e o modo de vida da sociedade?”, ressalta ele.
Nossa relação com o trabalho
Com isso, é importante debater a possibilidade de criarmos a longo prazo uma relação financeiramente justa e saudável no ambiente de trabalho. Para Torati, sempre deve-se investigar as motivações e as necessidades particulares de cada um, mas, em geral, o papel do psicanalista e do psicólogo clínico é ajudar o paciente a compreender que ser um trabalhador não significa se limitar a ser um agente produtivo.
“Quando nos tornamos um ser sem lazer, sem hobby, sem tempo para si, sem amigos e sem sexo porque reserva toda a sua libido apenas para investi-la no trabalho, devemos procurar meios para elaborar essa questão que prejudica a relação consigo, com os outros, com o uso do tempo de vida e com o próprio trabalho, gerando exaustão, ódio e repúdio”, comenta o especialista.
Segundo ele, dentre os desafios, é comum o paciente associar sofrimento com direito ao gozo. Por vezes, adoecer de síndrome de burnout surge como a única forma de se autorizar ao descanso sem culpa uma justificativa psicossocialmente aceitável.
“A avaliação desse tipo de esgotamento requer a consideração tanto das condições de trabalho quanto das tendências psíquicas individuais. Independentemente do cargo, é necessário examinar se as horas extras e a vida constituída em prol do trabalho vai além do suprimento das necessidades básicas, ou seja, se o seu excesso está relacionado ao medo de ser irrelevante ou excluído socialmente”, finaliza o psicólogo.
Fonte: vidaetrabalho