Sugestões para proteger os mais pobres no contexto dos cortes
por Eduardo Silva
Apesar do anúncio da lista de empresas que recebiam incentivos fiscais da União ter sido feito antes do anúncio do pacote de cortes do Ministério da Fazenda, o que fez com que muitos tivessem acreditado que o governo pudesse surpreender com um Pente Fino na renúncia fiscal, o governo preferiu surpreender com outra agenda o anúncio do cumprimento do compromisso de campanha de Lula de isentar do imposto de renda quem ganha até R$5.000,00.
Evidentemente que cumprir promessas de campanha nobilita qualquer governo.
Sobre essa surpresa, é preciso considerar os seguintes fatos:
(a) até R$2.824,00 (com os descontos simplificados), já existe isenção do IRPF. Dois cônjuges com essa renda que até supera R$5.000,00 já hoje não pagam impostos. Esse patamar alcançaria agora R$10.000,00 de renda familiar, (dois cônjuges) o que corresponde a uma parcela bem minoritária dos brasileiros e que
(b) o equilíbrio das contas, no pacote de cortes, para o longo prazo, se dará em cima de reajustes a menor no Salário Mínimo que passam a absolutamente ter que caber no arcabouço fiscal.
Isso significa que, se por um lado o governo poderá conseguir mais simpatias políticas nessa faixa de renda que se situa entre R$2.824,00 e R$5.000,00 ou R$10.000,00, talvez perca nas faixas de renda mais baixas, que são muito mais numerosas e que são também a sua tradicional e leal base política.
A mídia, através de diversos jornais vem apontando para uma redução, até 2030 de 109 a 110 bilhões de reais de economias para o governo no reajuste do Salário Mínimo a menor do que está estabelecido hoje.
Proteger o Salário Mínimo, portanto, é nesse contexto, crucial para a estabilidade da democracia e para o sucesso do governo Lula…
Vejamos, primeiro como anda o poder de compra do Salário Mínimo em sua série histórica e em seguida como talvez seja ainda possível, mesmo assim, nessa tremenda adversidade, protegê-lo.
Como anda, então o salário mínimo?
O Departamento Intersindical de Estatísticas Sociais e Econômicas, DIEESE, calcula mês a mês o valor do Salário Mínimo Nominal frente ao Salário Mínimo Necessário.
O gráfico, desde janeiro de 2003, do percentual de insuficiência salarial do salário mínimo nominal frente ao necessário é o seguinte:
O que se vê aí é que o Salário Mínimo Nominal foi capaz de comprar ao longo do período algo entre 14,43% em janeiro de 2003 e 26,7% em abril de 2012 (seu ponto mais alto) do que deveria poder comprar segundo a lei.
A linha pontilhada preta mostra uma média geral do poder de compra do Salário Mínimo no período que evoluiu de 21% a 23% dos 100% que por lei deveria ter.
Por sua vez o último salário da série, o de outubro de 2024, parâmetro para o crescimento a menor previsto no pacote, está aquém dessa média em cerca de uns dois pontos percentuais.
Se vê também, o crescimento do poder de compra nos anos do governo Lula 1 e 2, a estabilidade do governo Dilma, a erosão sob Bolsonaro e novamente o crescimento no Lula 3. Esse crescimento, como vemos no gráfico não alcançou, sequer, os níveis vigentes no governo Dilma e continua dentro do espectro do que foi pago sob o bolsonarismo.
É claro que a realidade é outra e que muitas famílias atualmente recebem uma complementação de renda decorrente do Bolsa Família. Mas é bom saber, especificamente em relação ao Salário Mínimo onde estamos, pois é esse valor que está aí que passará a servir como parâmetro para o crescimento futuro a menor previsto no pacote de cortes.
Como o parâmetro, ao que parece, será a inflação e não a cesta que o Salário Mínimo deveria legalmente poder comprar, quando essa inflação geral for menor do que a inflação dessa cesta calculada mês a mês pelo DIEESE, o Salário Mínimo Nominal, corrigido por ela, poderia cair ante o Salário Mínimo Necessário produzindo o oposto do esperado: o empobrecimento das famílias.
A sugestão é:
Se é de corrigir o Salário Mínimo pela inflação (+ os ajustes mínimos previstos, até 2,5% acima da inflação) o governo deveria pelo menos criar, juntamente com o DIEESE, um indicador que proteja o poder de compra do Salário Mínimo Nominal, ou seja o índice de inflação da cesta que baliza o cálculo, pelo DIEESE, do Salário Mínimo Necessário.
Esse índice deveria corrigir o Salário Mínimo quando a inflação dessa cesta exceder a do índice geral, evitando a deterioração do Salário Mínimo Nominal frente ao Necessário.
Se fizer isso poderá aplicar as novas regras tendo garantido pelo menos que o patamar atual de 20,86% que é o inacreditavelmente baixo poder de compra do Salário Mínimo Nominal em relação ao que deveria comprar por lei hoje não seja devastado, evitando, portanto, que caia aos níveis vistos no governo Bolsonaro, que não estão tão distantes assim pois despencaram a apenas 1,9 ponto percentual a menos do que hoje tendo chegado a dezembro de 2022 com um poder de compra de 18,96% do necessário.
O Pente Fino no BPC
A questão do pente fino do BPC (é bom que se diga, sem que haja um Pente Fino da Renúncia Fiscal às empresas) se liga ao fato de que o idoso e o portador de deficiência que estão com o CADUNICO desatualizado sofrem o Pente Fino sob o tacão da suspensão a priori do pagamento do benefício que é, muitas vezes, a sua única fonte de renda.
Ou seja, apesar de toda a vulnerabilidade social que motiva obviamente o próprio pagamento do BPC eles são tratados como culpados até prova em contrário, que é quando voltam a receber o benefício, tendo tido que comparecer presencialmente.
Ora, por definição muitos desses beneficiários apresentam grau extremo de vulnerabilidade, em muitos casos impossibilitando-os de representar-se a si mesmos.
Isso significa, para esse contingente, mais vulnerável, maior tempo para voltar a receber aquele benefício a que legalmente fazem jus, ou mesmo a perda definitiva dessa renda de sobrevivência devido às suas condições de miséria e precariedade extremas. Para exemplificar a dificuldade, a representação de um idoso senil deve ser feita por um tutor, normalmente um filho ou uma filha, condição que se obtém, não apenas pela filiação, mas num procedimento judicial muitas vezes oneroso, demorado e complexo, o que faz com que muitos idosos senis não tenham tutores oficiais.
Esse prejuízo, obviamente, não pode acontecer e deveria motivar a vigilância do Ministério Público e a responsabilização das autoridades que cancelassem inadvertidamente aquela renda alimentar de sobrevivência a titulares de direito por estarem com os dados cadastrais atrasados.
Qual a sugestão?
- Não suspender o pagamento do benefício até que esteja assentada a convicção do recebimento ilegal ou fraudulento do BPC pelo beneficiário;
- Criar Pente fino das Renúncias Fiscais pela análise do balanço das empresas, sua capacidade de investimentos, margem de lucros e remessas ao exterior, reavaliando a permanência ou não do incentivo fiscal.
De fato, não é admissível um Pente Fino sem o outro.
Esses cortes deveriam ter sido norteados pelo governo pela determinação absoluta de evitar o dano aos mais pobres e o dano a sua própria base de sustentação política, numa encruzilhada em que o que está em risco é a democracia brasileira.
Possa o governo ouvir e minimizar esse efeitos.
Eduardo Silva é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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