A promulgação da PEC da Anistia, realizada sem alarde em uma sessão esvaziada e sem um debate público adequado, representa um golpe silencioso e devastador contra as políticas afirmativas no Brasil. Em um contexto em que as conquistas sociais e políticas em prol da inclusão racial ainda são frágeis, essa emenda levanta sérias preocupações sobre o futuro da representatividade e da ética eleitoral no país.
O mito da democracia racial se materializa no perdão concedido aos partidos pelo descumprimento das cotas. Decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceram diretrizes para promover a inclusão racial, reconhecendo a necessidade de medidas afirmativas para fortalecer a diversidade nas disputas eleitorais. No entanto, essa PEC vai na contramão desses esforços, retirando recursos e incentivos essenciais para que candidatos possam competir em condições minimamente justas.
A PEC atinge o cerne da integridade das regras eleitorais ao legitimar a inobservância das leis que deveriam promover a diversidade política. Com essa promulgação, a classe política do Brasil abraça suas iniquidades, escancarando o entendimento de que as coisas são como são e que, se possível, assim devem permanecer.
Esse cenário é preocupante porque o financiamento de campanhas é um dos elementos mais determinantes para o sucesso eleitoral. Nossa dinâmica política se estruturou em bases racistas e sexistas, e não existe vontade política para a construção de um pacto democrático efetivo.
A escritora bell hooks utiliza dois conceitos: o de “sujeito” e o de “objeto” e argumenta que “(os sujeitos) têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades e nomear suas histórias” (hooks, 1989, p. 42). A realidade das pessoas-objeto, por outro lado, é sempre definida por terceiros; sua “história é designada apenas de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles sujeitos” (hooks, 1989, p. 42). O que ocorre na PEC do perdão é o endosso para que a população racializada permaneça à margem do poder, na condição de objeto da política e nunca de sujeito.
É inegável que essa PEC representa um retrocesso nas conquistas sociais alcançadas ao longo das últimas décadas. Políticas afirmativas, que têm como objetivo ampliar a representatividade, estão sendo minadas por uma medida que coloca em risco o avanço da inclusão racial na política brasileira. Ao enfraquecer esses mecanismos de suporte, essa emenda ameaça reverter os progressos conquistados, reforçando as barreiras que mantêm o sistema político excludente.
Além das questões relativas à representatividade racial, a discussão sobre a ampliação da imunidade tributária para partidos políticos também merece atenção. Essa medida pode reforçar a impunidade e enfraquecer a fiscalização sobre o uso de recursos públicos, facilitando práticas que escapam ao controle social e legal. Em um cenário em que a transparência e a justiça são fundamentais para a confiança nas instituições, isso levanta preocupações adicionais sobre o comprometimento com uma gestão ética e responsável dos recursos partidários.
Por tudo isso, é provável que a PEC do perdão enfrente questionamentos jurídicos, especialmente quanto à sua constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal pode ser chamado a intervir novamente, não apenas para proteger os direitos garantidos pela Constituição, mas também para assegurar que o país não retroceda nas conquistas duramente alcançadas em termos de representatividade e inclusão social.
O Brasil precisa avançar no combate ao racismo que assola a maior parte da população. A PEC que silencia as políticas afirmativas não só ameaça a representatividade racial, como também compromete a integridade das regras eleitorais ao legitimar o descumprimento das normas que visam promover a diversidade. Em uma democracia, retrocessos como este precisam ser combatidos, para que o progresso nas conquistas sociais e políticas seja mantido e ampliado.
Os herdeiros da política no Brasil são os mesmos das capitanias hereditárias. Para essas pessoas, não é interessante que o povo seja representado por si mesmo, que a democracia floresça. Faço minhas as palavras de Lélia Gonzalez: “Chega de ficarmos disfarçando que somos democratas raciais, que batemos no ombro do pretinho […] Chega desta postura paternalista que marca todas as relações da sociedade brasileira, as relações dos donos do poder com relação aos explorados, oprimidos e dominados; relações de compadrio, relações pessoais” (Diário da Assembleia Nacional Constituinte – suplemento ao N. 62, 1987, p. 121).
Sabemos que o político é pessoal, que a PEC do perdão mantém as mesmas peças no tabuleiro e, mais ainda, que a grana dos fundos eleitorais dos partidos continua nos bolsos dos amigos do Rei de Pasárgada. Desde as Assembleias Constituintes que precederam a promulgação da Constituição Cidadã, o Movimento Negro Unificado já apontava o cerne da questão que hoje se materializa na PEC. Eu gostaria de dizer que racistas não passarão, mas, diante de acontecimentos como este, infelizmente, só posso afirmar que o racismo não passa.