Além das análises políticas táticas sobre o quadro eleitoral de São Paulo em 2024, é fundamental o conhecimento e discussão dos programas dos candidatos, que orientarão a próxima administração municipal e seu posicionamento em relação à política nacional.
Neste texto, abordaremos o programa “Amor por São Paulo” (disponível aqui), de Boulos (PSOL) e Marta (PT), centrado na questão da saúde, que abarca cerca de 21 pontos dos 119 do programa. Em outras palavras, cerca de 17,6% do programa toca no tema saúde.
A leitura cuidadosa das propostas faz soar um alarme naqueles que lutam diariamente em defesa do SUS. O motivo do alarme é, ao mesmo tempo, simples e profundo. Não há, em nenhuma parte do programa, menção à privatização, um dos principais eixos políticos do neoliberalismo nos últimos 30 anos. Em nenhum momento é abordada a estatização ou reestatização dos equipamentos que foram privatizados e entregues de mão beijada para enriquecer as OSs.
Esta ausência é extremamente grave. Ela mostra, por si só, que uma eventual vitória de Boulos no próximo pleito, não irá reverter o cenário do SUS em São Paulo, por mais que entre as 21 propostas do programa relacionadas à saúde haja várias propostas corretas, como por exemplo investir mais na saúde mental.
Os lutadores em defesa do SUS sabem que há pelo menos três motivos que explicam o desmonte do SUS. O primeiro motivo é o subfinanciamento contínuo. Como o orçamento da União “exige” um dispêndio alto relacionado à dívida pública, foram criadas travas sucessivas para colocar limites de gastos nos serviços públicos. Podemos citar mecanismos como a DRU, Teto de Gastos e agora o Arcabouço Fiscal, proposto pelo governo Lula-Alckmin.
O segundo motivo do desmonte do SUS é a política privatizante, levada a cabo por sucessivas gestões, em nível federal, estadual e municipal. Os principais mecanismos de privatização são a entrega da gestão para as Organizações Sociais e as PPPs, Parcerias Público Privadas, mecanismo proposto originalmente por Haddad.
A terceira causa é que, embora o SUS tenha como um dos seus princípios o controle social, na prática ele é boicotado pelas administrações.
Na cidade de São Paulo, a modalidade de privatização mais presente é a entrega da saúde para as Organizações Sociais. Hoje a maior parte dos equipamentos está nas mãos delas ou prestes a passarem para sua gestão. Houve uma valente resistência às privatizações por parte do ativismo defensor do SUS, mas se trata de uma luta difícil. O mínimo que seria necessário para a vitória da luta contra a privatização da saúde seria uma postura firme das administrações ditas progressistas na cidade. Mas isso nunca aconteceu, tudo o contrário.
Entre as propostas de Boulos-Marta para a saúde municipal temos: Criação do PoupaTempo da saúde, através da criação de 16 policlínicas descentralizadas; implantação de saúde digital, eliminar o vazio assistencial da saúde no município, fortalecer a rede de saúde mental, políticas específicas para a população LGBT, para os idosos, para as mulheres, criar uma política de saúde mental para a juventude, ampliar a assistência nos territórios indígenas. São todas elas preocupações corretas, mas que não entram no problema de fundo: Como fortalecer o sistema de saúde dentro de uma visão que de fato busca um SUS 100% público, estatal, de qualidade, com controle popular e financiamento adequado.
Na realidade, lendo o programa com cuidado, ele vai na direção contrária. Por exemplo, no ponto 108, temos: 108. Fortalecer a Agência Reguladora de Serviços Públicos – SP Regula a fiscalização das concessões. No ponto 4 encontramos: “4.Aprimorar a fiscalização dos contratos públicos de saúde e desenvolver metas de indicadores de qualidade”.
Dito em outras palavras: Não bastasse a omissão completa sobre o tema das privatizações, a política concreta é de apenas fiscalizar as OSs. Nada de reversão dos equipamentos privatizados!
O SUS foi, provavelmente, a maior conquista popular das lutas dos anos 80. Países mais ricos que o Brasil não tem nada parecido. Esta conquista foi sempre bombardeada pelos políticos de direita, mas, infelizmente, também está sendo desprezada e detonada por administrações supostamente de esquerda. A campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo poderia dar visibilidade a nossa luta por um SUS 100% público e estatal, mas o programa de governo de Boulos é um obstáculo a isso. Chamamos aos lutadores e defensores de uma visão generosa de saúde pública a refletirem sobre este tema e não emprestar seu apoio a programas que enfraquecem o SUS.
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