
Eduardo Bonzatto e Anie Carvalho *, Pragmatismo Político
Este capítulo faz parte do livro Máquina de Educar (Máquina de dar aulas), obra que escrevemos como quem desarma um mecanismo, peça por peça, palavra por palavra, até encontrar, sob a engrenagem da escola, a carne da experiência, a escuta, o desejo de ensinar como quem se deixa tocar.
Escolhemos divulgar Projetos Projéteis porque ele carrega o pulso do livro. É uma crítica à escolarização como regime de previsibilidade e controle, e uma defesa apaixonada por uma educação que desconfia dos manuais e se arrisca no improviso do encontro.
Entre a flecha e o desvio, entre o plano e a queda, este capítulo convida à reflexão sobre a urgência de pensarmos a pedagogia como criação, e não como reprodução.
O livro completo está disponível na Amazon no link Livro completo Máquida de Educar. Mas começa aqui, com um disparo que, ao errar o alvo, talvez nos acerte em cheio.
Toda pedagogia é, antes de tudo, um disparo.
Disparam-se ideias como se fossem sementes. Mas sementes não são inocentes. Às vezes são granadas, às vezes pólvora prensada em cápsulas afetivas. O projeto é o artefato. O estudante, o alvo móvel. E o professor? Um atirador que treme entre o gesto e o erro.
Nos deram a ilusão de que projetar seria sonhar. Mas não é. Projetar é desejar com mira telescópica, com cálculo de vento, com a alma presa ao gatilho. Todo projeto contém em si a violência do futuro antecipado. Ele mira uma criança e quer que ela seja outra. Como se o presente fosse insuficiente, como se o agora fosse um ensaio fracassado para algo melhor.
Projetar é, portanto, querer matar o presente.
A pedagogia do projeto carrega em si um fetiche positivista, uma fé cega no depois, como se a dignidade do sujeito dependesse de alcançar aquilo que ainda não é. E o que é isso senão violência travestida de cuidado?
O projétil não pergunta se o outro quer ser atingido. Ele vai. Ele fura. Ele altera a rota dos corpos, das vidas, dos sentidos. E o mais perigoso é que o projétil pode vir em forma de PowerPoint, de plano de aula, de rubrica avaliativa, de BNCC. Não precisa de pólvora, basta uma diretriz bem-intencionada.
A BNCC, Base Nacional Comum Curricular, é o evangelho do tecnocrata. Reduz a vida a competências, transforma o desejo em habilidade mensurável, traduz o amor à língua em competência linguística. O verbo aprender vira cumprimento de meta. A criança vira planilha. E o professor, operador de um call center cognitivo.
A escola moderna é um regime de captura. E o projeto, nesse regime, é uma coleira dourada. Sorri, brilha, promete autonomia. Mas puxa.
Quando a educação se torna projeto, ela se aparta do fluxo da vida e vira plano de contenção.
Não há projeto neutro. Todo projeto é um gesto de poder, mesmo quando disfarçado de boas intenções. Ensinar não deveria ser o ato de despejar conteúdos num recipiente vazio, mas sim o ofício sutil de abrir frestas no tempo, burilar condições para que o saber se erga por si, como planta que rasga o asfalto. No entanto, o projeto educativo tradicional não cria possibilidades. Ele antecipa, padroniza, administra. Ele não convoca o novo, ele o previne. É uma engenharia da certeza, uma geometria da obediência. Em vez de fertilizar o imprevisível, ele constrange a criação com metas e cronogramas. Cada aula se torna um passo cronometrado, cada silêncio, uma falha, cada desvio, uma ameaça à eficácia. Assim, o inusitado, o erro, o espanto, que são a alma do aprendizado vivo, são sufocados como ervas daninhas num jardim programado por planilhas. E a escola, com seus projetos milimetricamente desenhados, vira um relógio: preciso, inflexível, infértil.
E o que é um projétil senão o irmão gêmeo da previsão?
Todo projétil parte de um ponto conhecido em direção a um alvo fixado. Mas os estudantes não são alvos. São constelações. E constelações não se miram, se contemplam.
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Há algo de cruel em querer antecipar a flor. Você cava, aduba, irriga, mas se insiste em prever quando ela vai abrir, só colhe angústia. E talvez por isso nossos estudantes andem ansiosos, exaustos, diagnosticados. São flores cronometradas, pressionadas a desabrochar em estações programadas por quem nunca sujou as mãos de terra. São corpos infantis presos a calendários adultos, almas sensíveis obrigadas a performar produtividade. Mas não são só os alunos. Os professores também adoecem nesse canteiro mecânico. Suas mãos estão calejadas de tanto tentar ajustar o tempo da vida ao tempo da máquina. Carregam pilhas de relatórios, rubricas, metas e instrumentos que medem tudo, exceto o amor, a escuta, a dúvida. Carregam também um silêncio: o de sua própria dor. Muitos ensinam com febre, com insônia, com a alma ferida por cobranças que não cessam. São jardineiros sem jardim, cuidadores que já não se sentem cuidados. E no esforço de fazer a flor abrir, esquecem que também são semente.
A escola da planilha não quer germinação, quer produtividade.
Há quem diga que projeto demais endurece a alma. E é verdade. Porque há um saber que não se escreve com régua, mas com ginga. Um conhecimento que não se transmite em linha reta, mas em curva, no vai e vem dos corpos que dançam enquanto aprendem. A vida não marcha, ela balança. A criança não aprende pelo compasso exato, mas pelo tropeço, pela hesitação, pelo improviso que a faz rir enquanto erra e criar enquanto brinca. O molejo é uma epistemologia esquecida, uma ciência do movimento vivo, do saber que escapa ao controle e floresce no inesperado.
Então proponho outra gramática: não projetar o futuro, mas desprogramar o presente. Abrir janelas no agora. Plantar bombas de indisciplina no solo da rotina. Deixar que o erro nos guie, que o improviso nos conduza, que a sala se desarrume como um campo de astros em colisão.
Educar não é apenas errar com ternura, tampouco acertar com frieza técnica. É saber escolher o método com sensibilidade e consciência, reconhecendo que a pedagogia é uma arte comprometida, feita de escuta, sim, mas também de direção. O que falta às escolas não é apenas afeto, é profissionalismo. Faltam mestres que compreendam o método não como regra imposta, mas como chave de leitura do mundo, como bússola ética e estética da travessia. O problema é que muitos se formam apenas por repetição. O estudante copia o professor, depois vira professor e reproduz fórmulas e práticas sem jamais compreendê-las de forma crítica, alimentando um ciclo vicioso de reprodução inconsciente, onde o ensinar deixa de ser criação e se torna apenas eco, ruído herdado de um saber que nunca se interrogou. A construção do saber, então, não é um viaduto nem uma aventura improvisada, mas sim uma encruzilhada consciente, onde o professor não apenas acompanha, mas orienta. Não apenas acolhe, mas também aponta. E nesse gesto, entre o tato e a clareza, dança-se o verdadeiro samba da formação humana.
Querem nos fazer acreditar que educar é preparar para o mundo. Mas quem prepara para o caos? Quem ensina a suportar o indizível, a dançar com a incerteza, a se encantar com o que não serve para nada?
Desconfio dos projetos porque eles têm começo, meio e fim. E a vida, se é alguma coisa, é sempre no meio. O meio do tropeço. O meio da travessia. O meio do grito que ainda não encontrou palavra.
Por isso também suspeito das perguntas que já vêm com resposta. O projeto é essa armadilha, ele já sabe onde quer chegar. Mas a educação deveria ser como a pergunta sem ponto de interrogação, uma pergunta aberta, uma pergunta que se pergunta.
E os professores? Devem ser como os trovadores medievais, andarilhos de sentido, carregando palavras como se fossem flechas encantadas. Que não matam. Que abrem.
É por isso que amo os projéteis que erram. A flecha torta. A bala que desvia. O traço que dança. O disparo que vira poesia. Pois há em todo erro uma promessa de autonomia. Quando o projétil falha, nasce um corpo livre. Quando o projeto falha, nasce um caminho.
E que os alunos, esses corpos-projéteis, esses seres que caem no mundo como meteoros, encontrem em nós menos um professor e mais um cometa. Alguém que também queima ao atravessar o céu.
Pois educar é isso, iluminar-se na queda.
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