
POR PLÍNIO GENTIL, professor de direitos humanos na PUC-SP, membro do grupo de pesquisa Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea, da UFSCar, procurador de Justiça no Estado de S. Paulo; JOÃO VIRGÍLIO TAGLIAVINI, professor emérito da UFSCar, doutor em educação, líder do grupo de pesquisa Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea, da UFSCar; EGBERTO PEREIRA DOS REIS, professor universitário, doutor em educação, membro do grupo de pesquisa Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea, da UFSCar; GABRIEL BITTENCOURT PEREZ, procurador de Justiça no Estado de S. Paulo, aposentado; BRUNA DE SOUZA SOARES, advogada, ex-aluna e formada pela Faculdade de Direito da Fundação Padre Albino, de Catanduva, em curso idealizado e na época coordenado por Alysson Mascaro
Como espectadores de videoaulas na Internet, há meses nos deparamos com alertas, feitos em pessoa pelo professor Alysson Mascaro, da USP, de que perfis falsos estavam tramando contra sua reputação; mais tarde se demonstrou que tais perfis eram criados e rapidamente desfeitos, constituindo seu modus operandi convidar pessoas próximas do professor a fazer queixas contra ele; inicialmente se instigava que criticassem sua posição política, em seguida isso derivou para assuntos de sua vida privada. Era uma arregimentação feita por perfis de existência efêmera e sem identificação de seus criadores e, ainda mais, atendida exclusivamente por desconhecidos, que então não se sabia se eram pessoas reais. Está claro, portanto, que é extremamente questionável a credibilidade do conjunto de queixas que assim foi se formando.
Quando o caminho utilizado não é a via formal, aquela que busca as instituições competentes, toda e qualquer reclamação pode e deve ser questionada. O Estado brasileiro, de molde republicano, que considera a neutralidade do direito, a impessoalidade das investigações e a igualdade de todos perante a lei, disponibiliza para toda pessoa lesada, ou ameaçada em seus direitos, os mecanismos adequados à apuração dos fatos. Mas essa via republicana exige, para legitimidade da apuração, que se adote o devido processo legal, onde, naturalmente, não são permitidos nem o anonimato, nem a falta de oportunidade ao denunciado para se manifestar quanto à denúncia.
Isto, todos sabemos, não é qualquer coisa: estamos falando de diversos itens do artigo 5º da Constituição Federal, que só não foram aqui enumerados. Trata-se de conquista de séculos de evolução dos direitos fundamentais, que têm por objetivo proteger as possíveis vítimas de perseguição, seja política, pessoal, comercial, ou parte de uma simples guerra de egos num ambiente profissional. É garantia de todos, sem exceção, a fim de que sempre estejamos assegurados contra a má-fé de quem não goste de nós ou de nossa postura política. Se, por outro lado, formos abandonar a via institucional e, consequentemente, o devido processo legal, estaremos adentrando no terreno sem limites dos espaços de comunicação criados por empresas privadas e que se expressam em praticamente todas as redes sociais, onde tudo é aceito, bastando um clique numa tecla. Se houver uma quantidade expressiva de apoiadores de qualquer coisa, do terraplanismo à quadratura do círculo, pronto: estará estabelecida uma nova verdade, sacramentada pelo tribunal da Internet. O Estado de Direito terá chegado a seu fim.
A captação de denunciantes incertos por meio de perfis falsos, voltados de antemão para destruição de imagem, descredibiliza tudo quanto eventualmente se produza em seguida. Não podem servir como prova elementos marcados pelo pecado original de uma perseguição mais que evidente. É quase o mesmo que validar a “prova” obtida por meio de um flagrante preparado. Os criminalistas sabem do que se trata: desejando-se que alguém cometa um crime para que seja preso “legalmente”, prepara-se para ele uma armadilha, que nada mais é do que o induzimento à prática criminosa; quando o sujeito cai na arapuca, do ponto de vista objetivo é como se tivesse cometido um crime e aí então será preso. Para os que tenham alguma dúvida, é bom esclarecer que a “prova” obtida por um flagrante preparado não tem valor algum, o preso será solto e essa preparação pode ser punida como abuso de autoridade.
É preciso, por fim, trazer à lembrança quem exatamente é Alysson Mascaro: um dos mais jovens professores titulares da faculdade de Direito do Largo S. Francisco e certamente uma ave rara entre seus pares, por assumir claramente sua posição em favor do socialismo e denunciar o escândalo da desigualdade estrutural do capitalismo. É pesquisador sério, de inquestionável consistência, com trabalhos de fôlego que têm servido para iluminar o caminho de quem se aventure a compreender o direito numa sociedade de classes. Fundou em Catanduva uma faculdade de Direito ímpar, a qual, enquanto o teve como coordenador, foi referência no ensino crítico da ciência jurídica e orgulho para os que, nesse tempo, ali se formaram. Orienta pesquisas e coordena grupos de trabalho, com resultados que se traduzem na formação de inúmeros professores na área da filosofia do direito, todos comprometidos com a transformação da sociedade para algo minimamente humano. É nosso conhecido há mais de vinte anos e nele jamais identificamos nada parecido com a inclinação por, aproveitando-se de sua condição, agir com violência ou prepotência.
Alysson Mascaro sempre colaborou de maneira gratuita, generosa e constante com o grupo de pesquisa Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea, vinculado à Universidade Federal de São Carlos, coordenado por um dos subscritores deste texto e do qual alguns somos integrantes. Suas contribuições foram sempre substanciais e fundamentais, permitindo-nos avançar significativamente nas investigações no campo da filosofia e da sociologia do direito; como quando, por exemplo, participou dos debates sobre os rumos da Constituição brasileira, realizados em encontros acadêmicos e públicos promovidos pela UFSCar no Teatro Florestan Fernandes.
Suas obras ganharam traduções em incontáveis idiomas e Mascaro é um luminar em ascensão no seu campo não apenas no Brasil, mas, há muito, já além de nossas fronteiras. Claro que ele incomoda. Pois que esse incômodo saudável, que nos estimula a superar nossos limites, se sobreponha à miudeza dos ressentimentos que compreensivelmente se desenvolvem em situações dessa natureza. E que a justiça, os direitos fundamentais e o devido processo legal possam, enfim, ter lugar nesse cenário em que o Estado de Direito às vezes parece tirar férias.