A perda de Preta Gil, neste domingo (20), vai muito além da seara artística. Mulher negra, bissexual assumida e com um corpo fora dos padrões estéticos impostos pelo capitalismo, ela usou sua fama e popularidade para a luta contra o machismo, o racismo, a LGBTfobia e a gordofobia. Já enfrentando o câncer que a vitimou, também comprou a briga de derrubar o estigma aos que têm de usar bolsa de colostomia.
Preta estava em Nova Iorque, numa das últimas cartadas possíveis para vencer o câncer que a acometeu. Diante do insucesso das alternativas anteriores, resolveu se submeter a um tratamento experimental. “Sou grata por passar por tudo isso podendo me tratar com dignidade. Entro em uma fase difícil. No Brasil, já fizemos tudo que podíamos, agora a minha chance de cura está no exterior, e é para lá que eu vou”, disse recentemente.
Filha de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, Gilberto Gil, e de Sandra Gadelha, Preta poderia ficar numa posição confortável de indiferença a tudo isso. Poderia se dedicar a cirurgias e procedimentos estéticos para mudar seu corpo. Poderia ter escondido sua sexualidade, sua doença, sua luta pela vida. Mas decidiu seguir o caminho oposto.
Tendo sentido na pele o que são esses preconceitos, que afetam milhões de pessoas cotidianamente, Preta escolheu se impor, dizer o que precisava ser dito, mostrar o que não era comum ser mostrado. Fez de seu corpo, de sua vida, um instrumento de luta para ajudar aqueles que não têm a proteção da fama ao seu lado.
“A mulher não volta mais para a cozinha, o gay não volta mais para o armário e a gorda não volta mais para a clínica de estética ou para o consultório de emagrecimento”, declarou, em 2020, à revista Ela.
Foi com esse espírito livre e emancipado que Preta se lançou na música. Seu primeiro álbum, “Prêt-à porter”, de 2003, tinha fotos suas nua. Os mais conservadores e caretas — aqueles que acham que só há beleza em corpos brancos, magros e jovens e que somente estes estão autorizados a aparecer publicamente — tiveram de engolir sua “ousadia”, mas não sem lançar sobre a artista todo tipo de impropérios. Aliás, condutas como essa se tornaram rotina no dia a dia de suas redes.
Em 2021, Preta declarou à Marie Claire: “Eu sempre gostei de mostrar o meu corpo, mas, primeiro, ele foi muito exposto. Vi o meu corpo sendo atacado logo no início da minha carreira. E foi a partir daí que eu entendi que o meu corpo é político, que ele fala sobre a opressão que as mulheres sofrem no Brasil e no mundo. Eu, por excesso de críticas, já me rendi diversas vezes para a pressão estética”. Mais recentemente, concluiu, no programa Conversa com Bial: “Na época, não se dava nome. Mas era gordofobia, homofobia e racismo”.
Preta usava suas redes, seus shows, suas entrevistas para tratar dessas e de outras questões, como forma de garantir a cada um o direito de ser o que se é.
Já enfrentando o câncer — inicialmente de intestino, descoberto em 2023 — afirmou: “Um dos grandes problemas que a gente enfrenta no combate ao câncer é o estigma. Isso faz com que muita gente não se cuide, não busque ajuda”. Em 2023, teve de enfrentar a traição do marido Rodrigo Godoy, ocorrida quando ela já estava na luta contra a doença, e a decorrente dor da separação.
Com a evolução da doença, naquele mesmo ano, a cantora teve de tirar parte do intestino, o que a obrigou a usar bolsa de colostomia, ainda temporariamente. Em mais de uma ocasião desde então, a cantora fez questão de tentar aliviar o tabu que paira sobre o dispositivo e sobre aqueles que precisam usá-lo.
Em suas redes, fez fotos e vídeos usando a bolsa, de biquíni e…vivendo a vida. “Estou me acostumando com a minha bolsinha de colostomia. Sim, eu tive que colocar uma bolsa de colostomia dessa vez definitiva e não provisória, como foi a do ano passado. Dessa vez, eu vou ficar pra sempre com essa bolsinha. Eu sou muito grata a ela por isso, estou me acostumando e as enfermeiras de ileostomia me dando aulas, dicas de como vai ser em casa”, disse, no início deste ano.
Não havia nada que parasse Preta. Sua vida intensa, seus amores, suas dores, suas falas só foram mesmo estancadas pela agressividade da doença. Foram muitos os tratamentos, as cirurgias, as internações, as melhoras e pioras. “Que o amor que Preta compartilhou em sua vida siga acalentando os seus corações — e os corações de todas as pessoas que tanto a admirava”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelas redes, ao saber do falecimento, em mensagem dirigida à família.
Preta se foi muito jovem, com apenas 50 anos, deixando um filho (Francisco), uma neta (Sol de Maria). Mas soube viver, soube fazer de sua experiência algo útil à coletividade. Preta se foi, mas sua força ecoa em milhões de mulheres, de negros, nas pessoas “fora dos padrões”, na população LGBTQIA+, nos que enfrentam as mais variadas doenças. Preta, com seu jeito despachado, mostrou a dignidade e a beleza dos que lutam e vivem intensamente até o fim.