O sol abrasador aquece a areia, alguns banhistas nadam, outros descansam na praia de Las Canteras, muito próxima do centro de Las ­Palmas. Noor* está sentado num muro baixo e olha fixamente para o mar. Ele tem 18 anos, é do Paquistão e está na cidade há três semanas. “Tenho saudade da minha mãe”, murmura. “Sinto-me sozinho aqui.” Então abaixa a cabeça. “Não consigo encontrar trabalho e não tenho dinheiro, não sei o que fazer.” Segundo a Caminando­ Fronteras, que monitora os direitos dos migrantes na Espanha, a rota para as Ilhas Canárias continua a ser a mais letal, com 9.757 mortes no mar só no ano passado. A Mauritânia, seguida do Senegal, é o principal ponto de partida para o arquipélago.

Três rapazes sobem a ladeira correndo entre os prédios no antigo bairro de trabalhadores de La Isleta, perto do porto de Las Palmas. “Chegamos, pode parar de correr”, grita um deles para um amigo que ficou para trás no percurso. À noite, todos voltam para o centro de recepção de migrantes Canarias 50. São grandes tendas montadas entre os muros de um antigo complexo militar. “Cheguei no último sábado à ilha de El Hierro”, diz Aboubakar, 24 anos, do Senegal. “Amanhã às 10 tenho uma entrevista para pedir asilo. Está tudo bem no centro, mas somos gente demais para os serviços de lá. Espero conseguir os documentos logo e ir para Madri.”

Mercedes de León Duarte, do projeto Canarias Convive, escolhido pelo governo autônomo das ilhas para traçar um novo plano de imigração e coexistência, explica que a população estrangeira na região chega a 444 mil, de um total de 2,2 milhões. “Mas só 9,4% deles vêm da África, até 49,5% vêm das Américas e 35,8% do resto da Europa. Há um discurso tóxico e instrumental que trata a chegada de migrantes pelo mar, vindos da África, como uma invasão.”

No ano passado, as autoridades registraram 9.757 mortes no trajeto

O centro de emergência Las Raíces, em Tenerife, é construído numa antiga área militar ao lado do aeroporto. Para a Fundação Ecca Social, integrante da instituição jesuíta Rede de Serviço aos Migrantes, os centros da ilha “apresentam falhas que não garantem um tratamento digno”. Francisco Navarra, da Accem, organização que dirige vários centros nas Canárias e na Espanha, descreve como funciona: “Cuidamos da intervenção, com equipes de operadores especializados” em apoio psicológico, social e médico. “A Traxa”, continua Navarra, “é a companhia que administra a infraestrutura”, mas o programa inteiro depende do Ministério da Inclusão, em Madri. “O material dos centros, como tendas e banheiros químicos, é temporário, porque são instalações de emergência, não podemos fazer construções.”

Logo após a entrada do centro, na borda de campos de tremoço, um grupo de jovens escuta música. “Sou do Mali, estou aqui há 15 dias”, diz Ahmad, o mais jovem deles. “Aqui está tudo bem, mas somos muitos e a cidade fica longe, estamos meio isolados.” Nesse lugar, a associação Aqui Estamos oferece aulas de espanhol. Com seu projeto Informa, também dá apoio jurídico gratuito nas salas da Universidade de La Laguna, graças a advogados e estudantes voluntários. “Eles nos pedem auxílio com documentos”, informa Fran ­Ledesma, “mas também para outros casos em que os direitos podem ser violados.”

No porto de Arguineguin, cidadezinha no sul da ilha de Gran Canaria, dois cascos laranja se destacam entre os barcos de pesca e ferryboats de turistas. São barcos do Salvamento Marítimo, serviço do Ministério dos Transportes. Eles resgatam as embarcações precárias que carregam aqueles que tentam chegar à Europa em busca de uma nova vida. Cristian ­Castaño, encarregado de Marinha Mercante no sindicato CCOO, diz com emoção: “Quando os resgates são seu trabalho diário, seu coração e seu corpo sofrem. Eles não ensinam isso na escola náutica. Poderíamos ser nós, na Europa, experimentando uma crise, indo para a África em busca de trabalho. Poderiam ser nossos filhos, devemos acolhê-los”. Alguns marinheiros confirmam que seu trabalho é importante porque a situação na rota “é louca”. “Se você quer chegar a El Hierro (a ilha mais oriental), basta uma pane, uma tempestade, e você fica perdido no Atlântico.” Infelizmente, não é raro encontrar barcos à deriva ao largo da costa sul-americana, carregados de cadáveres.

Esforço. Terreros faz parte da equipe de resgate em Tenerife. A maioria dos botes parte da Mauritânia ou do Senegal. Abaixo, o senegalês Saidou, de 18 anos – Imagem: Desireé Martin/AFP e Giacomo Sini

Na torre da Capitania do Porto de ­Santa Cruz de Tenerife, Dolores ­Septién ­Terreros, chefe do centro de resgate marítimo local, desenrola uma carta náutica sobre a mesa. “Aqui”, diz, apontando ao sul da ilha de El Hierro, “quando um barco cruza o Meridiano 18 para Oeste, temos certeza de que vai se perder no oceano e precisamos intervir.” O centro coordena operações em todo o setor leste das Canárias. “Temos de resgatar todos que estão em perigo, não importa sua nacionalidade ou situação política ou legal.” A área SAR, pela qual o centro é responsável, é enorme. “Imagine que as Canárias são na verdade responsáveis por 1 milhão de metros quadrados de oceano, em comparação com 1,5 milhão de toda a Espanha. São dois terços.”

Saidou mora num apartamento em Las Palmas, graças a um projeto da Ecc­a ­Social. Ele é do Senegal, tem 18 anos e desde criança teve de trabalhar como pescador na Mauritânia para sustentar a família. “Um trabalho duro e miserável”, lamenta. Um dia, um amigo lhe falou sobre a viagem. “Era um sonho que ficou enterrado dentro de mim, vir para a Europa para me encontrar e dar uma vida melhor à minha família, da qual sou o mais velho.” Saidou não tinha dinheiro suficiente para a viagem, mas conseguiu embarcar no Senegal. “Como pescador, conhecia bem esses barcos. O capitão me quis a bordo para que eu pudesse intervir, se houvesse problemas mecânicos no percurso.” O senegalês bebe um pouco de água antes de continuar. “Durante a viagem, as ondas danificaram o barco. Usamos plástico para tapar os buracos e continuamos a navegar, retirando a água que se infiltrava.”

Eles passaram sete dias no mar, antes de alcançar as Ilhas Canárias. “Foi uma experiência terrível. Não tínhamos comida, os ventos fortes nos sacudiam e alguns ficaram doentes, vomitando o tempo todo. Só fazíamos uma refeição por dia, por volta das 3 da tarde, um pacote de biscoitos e um saco de água para cada um. Mas isso não me preocupava, porque meu único objetivo era chegar à Europa, para dar uma vida melhor à minha mãe.” O momento mais difícil, lembra, foi “quando estávamos a apenas 30 quilômetros das Canárias e o combustível acabou. Ficamos à deriva até de manhã, quando vimos um barco a distância. Tentamos chamá-lo, mas não adiantou. Então ele avisou a Cruz Vermelha, que veio nos socorrer e nos levou à ilha de El Hierro”. Depois de uma pausa, Saidou continua: “Muitos amigos meus morreram no mar. Não cometam o erro de partir dessa forma”. Ele lembra que, quando chegou, foi levado a um centro para menores: “Havia 300 crianças num prédio onde cabiam algumas dúzias. Fiquei lá durante um ano e seis meses, sem qualquer projeto de educação”.

“Foi uma experiência terrível. Muitos amigos meus morreram no mar”, lembra Saidou, senegalês de 18 anos

A situação de menores desacompanhados é muito complexa nas Canárias. As crianças são responsabilidade do governo autônomo local, mas, em 26 de março, a Suprema Corte de Madri ordenou que o governo nacional incluísse mil menores nos programas internacionais de proteção administrados em nível estadual, medida considerada essencial para solucionar a superlotação nos centros do arquipélago. Entre os muitos projetos de apoio a menores estão cursos de espanhol organizados pelo grupo de cooperação para o desenvolvimento Unidos, da Universidade­ de Las Palmas. “O projeto envolve diversas faculdades”, diz a professora Susan Cranfield Mackay. “Graças a numerosos voluntários, incluídos alguns estudantes, damos aulas de espanhol todas as manhãs em uma biblioteca pública. Algumas crianças vêm de centros fora da cidade, a uma hora e meia de viagem de ônibus. Depois dos 16 anos, eles não são mais obrigados a estudar, por isso os mais velhos muitas vezes são excluídos da educação.”

Abel Acosta, do CEAR, organização que oferece serviços de recepção e integração, conta que no esquema das rotas de recepção “a maioria, depois de um ou dois meses, é transferida para a Península Ibérica, mas muitos que têm ligações ou chegam aqui como menores decidem ficar”.

Moussa entra no escritório da CEAR em Santa Cruz de Tenerife. Com quase 20 anos, nascido no Mali, ele também chegou ainda menor de idade. Tem hora marcada para uma sessão de aconselhamento profissional. “Eu queria aprender a dirigir caminhões”, conta. “Hoje sou garçom num hotel, mas gostaria de ser motorista.” Moussa chegou em 2020 a El ­Hierro. “Foi em setembro, eu tinha 15 anos. No Mali, trabalhei com gado desde os 8 anos. Quando cheguei, pensava em estudar.” Ele não quer chegar ao continente, ao menos por enquanto. “Estou bem aqui”, garante. “Estou tranquilo, as pessoas são boas. Sinto-me livre para fazer o que quero, isso é importante. Eu gostaria de ficar aqui trabalhando, estudando e jogando futebol, é claro”. E continua: “Sou meio-campo no Raqui San Isidro”. O Tenerife, equipe da segunda divisão espanhola, o convidou para um teste. “Vamos ver como me saio.” •


*Os nomes dos migrantes foram alterados por razões de segurança.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Presos no limbo’

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Last Update: 05/06/2025