O presidente do país, Willam Ruto, anunciou a retirada do projeto de orçamento para 2024-25 que previa aumentos de impostos. O texto levou a uma onda de protestos no país que deixaram ao menos 22 mortos na terça-feira.
“Tendo ouvido atentamente o povo do país, que disse em alto e bom som que não quer ter nada a ver com esta lei financeira de 2024, inclino a minha cabeça e não assinarei a lei financeira de 2024, que será, portanto, retirada”, declarou William Ruto.
Após a apresentação ao Parlamento, em 13 de junho, do projeto de orçamento que prevê a introdução de novos impostos, surgiu no país um movimento denominado “Ocupar o Parlamento”, lançado nas redes sociais, que encontrou uma forte resposta entre a “geração Z” (jovens nascidos depois de 1997).
A mobilização cresceu durante as duas primeiras manifestações pacíficas de 18 e 20 de junho e muitos quenianos seguiram os passos da juventude. O slogan anti-impostos tornou-se antigovernamental, com slogans como “Ruto deve ir embora”.
O governo anunciou, então, que estava abandonando a maior parte das novas medidas fiscais. Mas isto não dissuadiu os manifestantes, que denunciam um truque, que consiste em compensar a retirada de certas medidas por outras. Eles apontam, sobretudo, um aumento de 50% nos impostos sobre os combustíveis.
O descontentamento é ainda mais forte porque William Ruto foi eleito, em agosto de 2022, prometendo defender os mais pobres. No ano passado, seu governo já aumentou o imposto sobre o rendimento e as contribuições para a saúde e duplicou o IVA da gasolina.
Manifestações e invasão do Parlamento
O país despertou nesta quarta-feira em estado de choque devido à violência da véspera e a invasão do Parlamento, pela primeira vez na história do país independente desde 1963.
As tensões aumentaram durante a tarde na capital, Nairóbi, à medida que os manifestantes avançavam em direção ao Parlamento.
Segundo ONGs, a polícia disparou munições reais para tentar conter a multidão, o que forçou as barreiras de segurança na entrada do complexo que abriga a Assembleia Nacional e o Senado. Prédios foram saqueados e parcialmente queimados.
Saques também ocorreram em outros pontos da capital e em várias cidades do país. Prédios foram queimados em Eldoret, no Vale do Rift, reduto do presidente William Ruto.
Vinte e duas pessoas foram mortas no país durante os protestos de terça-feira, incluindo 19 na capital Nairóbi, informou nesta quarta-feira o órgão oficial de direitos humanos, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do país (KNHRC). “Mais de 300 feridos e mais de 50 detenções”, indicou a sua presidente, Roseline Odede, anunciando “a abertura de uma investigação” sobre essas mortes.
Violência e anarquia
Depois do dia de violência e saques na capital Nairóbi, o presidente William Ruto quis mostrar firmeza na noite de terça-feira e garantiu que a “violência e a anarquia” seriam firmemente reprimidas.
O movimento de protesto antigovernamental no país convocou uma manifestação pacífica na quinta-feira em memória das vítimas da mobilização caótica de terça-feira.
“Todo o poder soberano pertence ao povo do país. Não poderão matar todos nós”, escreveu a jornalista e ativista Hanifa Adan, uma figura do protesto, na manhã de quarta-feira no X, em resposta ao presidente que anunciou que tinha mobilizado o Exército para apoiar a polícia diante dos protestos.
“Amanhã marcharemos pacificamente novamente vestidos de branco, por todas as nossas vítimas. Vocês não serão esquecidos!”, acrescentou a jornalista.
As cenas de caos alarmaram na terça-feira os Estados Unidos e mais de uma dezena de países europeus, a ONU e a União Africana, que se declararam “profundamente preocupados” e fizeram um apelo à calma.
A principal coligação da oposição, Azimio, liderada pelo veterano Raila Odinga, acusou o governo de “liberar a sua força bruta” contra os manifestantes e pediu à polícia para “parar de atirar em crianças inocentes, pacíficas e desarmadas”.
O grupo de ONGs liderado pela Anistia país também destacou na terça-feira que registaram 21 sequestros de pessoas por “oficiais uniformizados ou à paisana” nas últimas 24 horas.
Repressão da polícia
Na manhã desta quarta-feira, a Comissão Queniana de Direitos Humanos, realizou uma coletiva de imprensa para denunciar as práticas repressivas da polícia. O uso de munições reais ou o envio do Exército às ruas da capital não são dignos do Estado de Direito, segundo a organização.
Ela aponta para a responsabilidade do comandante da polícia queniana e especialmente do presidente William Ruto, que persiste em não ouvir o seu povo. Segundo o KHRC, a mobilização afetou ontem 67 cidades em todo o país, o que é histórico.
Para Marie-Emmanuelle Pommerolle, professora de ciências políticas da Universidade Paris 1-Panthéon-Sorbonne e pesquisadora no Instituto do Mundo Africano, o fato do alvo dos manifestantes ter sido o Parlamento, poderia ser uma das justificativas para a forte repressão.
“Mas também temos que lembrar que Ruto é um homem político que há 35 anos navega em instituições politicas quenianas e nos anos 90, durante a era do presidente (Daniel Toroitich Arap) Moi, uma era autoritária, ele era um dos elos do uso da violência”, explica afirmando que, apesar de ter sido eleito democraticamente, Ruto tem “um histórico de uso da repressão”, explicou a pesquisadora à RFI.
Para ela, a invasão do Parlamento mostra que existe uma verdadeira falta de confiança em relação ao poder, expressada pelo movimento. “Mas as instituições quenianas são fortes. Existe uma Justiça que é relativamente respeitada, advogados, instituições religiosas que vão talvez tentar ser intermediários entre o governo e os jovens que protestam”.