João Paulo Gomes da Silva, de 32 anos, se lembra com clareza de quando fez o show de lançamento de seu primeiro álbum, Crônicas de Um Sonhador (2015), sob a cesta de basquete de um ginásio, para cerca de 200 pessoas.
A tão aguardada apresentação, inicialmente prevista para o teatro do clube, foi deslocada para o espaço esportivo porque o teatro entrou em reforma sem aviso prévio – e o artista só soube disso na véspera.
“O som estava horrível”, resume João Paulo, ou melhor, Jota.pê, em entrevista por Zoom a CartaCapital. Passados dez anos desse desconcertante acontecimento, ele realizou uma façanha que não ocorria na música brasileira há 20 anos: ganhou três Grammy Latino de uma só vez.
Seu segundo disco, Se o Meu Peito Fosse o Mundo (2024), foi eleito na edição do ano passado o Melhor Álbum de Música Popular Brasileira/Música Afro-Portuguesa Brasileira, Melhor Álbum de Engenharia de Gravação e Melhor Canção em Língua Portuguesa com Ouro Marrom.
Nascido em Osasco, na Grande São Paulo, Jota.pê vem de uma família de músicos. Ele começou a tocar violão aos 9 anos; aos 12, passou a compor e, aos 15, integrou sua primeira banda de rock.
Como muitos cantores, se virou, durante muito tempo, se dedicando a outros trabalhos e ao estudo durante o dia, e tocando em barzinhos à noite. Sem negar que odiava tudo que fazia fora da música, admite: “Tentei muito não ser músico. Tive medo de não conseguir ganhar dinheiro, de viver disso”.
A decisão de mergulhar na carreira ocorreu, ironicamente, depois do improvisado show de lançamento de primeiro trabalho solo. Cabe o parêntese: Jota.pê levou quatro anos para pagar o estúdio de gravação do disco de estreia, cuja produção havia sido negociada na camaradagem, quase ao preço de um single.
O fato de ter se jogado na música não significa que não precisou trabalhar com outra atividade. No começo da carreira, dividia seu tempo entre a música e a computação gráfica, área na qual se formou.
Em 2018, no Julinho Clube, localizado no circuito da vida noturna da Vila Madalena, em São Paulo, ele teve a oportunidade de mostrar seu trabalho autoral em uma longa temporada.
Ele já havia apresentado qualidade no primeiro trabalho, com composições bem talhadas, musicalidade e afinação acima da média para um projeto inicial. Não à toa, em 2017, foi parar no programa The Voice Brasil, da TV Globo. Apesar do crescimento orgânico da carreira, isso não foi suficiente.
Em 2019, por meio de conhecidos, acabou indo trabalhar numa agência especializada em trilha sonora, a DaHouse Audio. Foi lá que gravou o EP Garoa (2021), a custo zero.
Quase na mesma época, lançou Percorrer em Nós (2022), do Duo Àvuà que ele mantinha com a amiga Bruna Black. “É um disco que amo muito. Foi feito na loucura”, afirma, referindo-se ao fato de que, embora tenha tido apoio de um selo, foi feito com pouquíssimo tempo e recursos limitados.
“Queria construir um disco real, que falasse de meu lado cômico, das dores pelas quais passo, da esperança e de como foi difícil chegar até aqui”
“Demorou muito até que conseguisse lançar as coisas com um pouco mais de calma”, diz ele sobre o início do processo de produção do premiado Se o Meu Peito Fosse o Mundo, que teve três anos de gestação e saiu em parceria com a Som Livre.
As composições de Jota.pê têm claro tom confessional. Suas músicas são serenas e indicam que ele não tem o menor interesse em chamar atenção com palavras picantes ou variações melódicas extravagantes. São canções extremamente reflexivas e agradáveis, com voz muito bem modulada.
“No começo, era muito mais orgânico. Estava irritado, apaixonado, feliz, animado, aquilo virava uma música. Hoje, estou mais provocativo, de prestar atenção no mundo, de propósito, para fazer alguma coisa depois”, diz, tentando explicar seu processo de composição do lançamento de 2024.
“Pensei nesse disco como uma comemoração de tudo que passei até aqui. Só eu sei a treta que foi para estar com uma gravadora”, diz sobre o premiado álbum. Apesar da celebração, Jota.pê não faz desse projeto uma festa. Ele é, ao contrário, a expressão de alegrias, dores e esperança.
A faixa Ouro Marrom, só de Jota.pê, tem trechos potentes: Que essa pele marrom/ Suba o tom se for preciso/ Muito além dessa dor/ Bem mais amor, eu sei pelo que brigo. “Falo sobre o racismo que todo negro passa e eu também vivi”, pontua.
A faixa Banzo, de Jota.pê e Nina Oliveira, que significa sentimento de melancolia do negro forçado à escravidão, expressa o direito de sonhar do artista.
Na canção Quem É Juão?, só dele, Jota.pê faz troça com seus “insucessos” amorosos. Já Naise, de Nina, com a participação da cantora Xênia França, é um xote que comemora um forró do primeiro disco, que acabou sendo adotado por algumas escolas de dança no País.
“Queria construir um disco real, que falasse de meu lado cômico, das dores pelas quais de fato passo, da esperança e de como foi difícil chegar até aqui. Foi muito choro para conseguir dar um sorriso”, afirma.
Jota.pê mostra, na breve carreira, autenticidade e uma certa tentativa de remar contra a maré do mercado: “Prefiro ser de verdade a ser alguém montado para funcionar para a indústria. Música não mente. Nunca tive medo de ser real porque foi isso que me fez chegar até aqui. Agora que está funcionando, não vou abandonar o que me trouxe até aqui”. •
Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Prefiro ser de verdade’