Precisamos falar sobre Múcio

“Age em relação a teus amigos como se eles devessem tornar-se um dia teus inimigos” – Cardeal Mazarin, Breviário dos políticos

 

O governo Lula ainda não conseguira instalar-se de fato; a área da defesa permanecia intocada (como intocada permanece até aqui), e a mobilização popular cessara com a “subida da rampa”, promessa finada em sua bela metáfora. Os chefes militares do novo governo haviam sido ditados pelas fileiras ao ministro da Defesa; o presidente não cuidou politicamente da lista que lhe foi apresentada, não pesou os nomes nem os critérios da escola estritamente castrense, e os comandos permaneceram os mesmos. Havíamos vencido as eleições, assumíramos o governo, mas tudo permanecia como dantes no castelo de Abrantes. Assim, o passado que supúnhamos haver derrotado é que construía os fatos, e os fatos nos governavam.

[Em setembro de 2023, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), com outros parlamentares, foi recebido em audiência pelo ministro da Defesa. Seu relato: “Fui à Defesa discutir a Lei nº 13.954, de 2019 (que amplia os poderes dos oficiais superiores e reduz os direitos dos praças). Fomos recebidos por José Múcio Monteiro e uma mesa cheia de generais. A certa altura, sem pedir segredo, o ministro, referindo-se aos oficiais, diz: ‘São todos bolsonaristas. Tem golpista e legalista. Mas todos bolsonaristas’.”]

No dia 8 de Janeiro, o ministro da Defesa saboreava acepipes em um restaurante badalado de Brasília quando foi surpreendido (o depoimento é dele) pela notícia da turbamulta invadindo as sedes dos Poderes. Uma súcia arrecadada à vista de todos e por muito tempo, trazida de todos os quadrantes do País, por todos os meios, para se juntar aos insurretos que ocupavam os portões e as imediações dos quartéis, sob a proteção delinquente de seus comandantes.

Do outro lado da Esplanada, revelando uma salutar contradição no governo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, comandava de seu gabinete a reação possível. Diz a crônica que foi apresentada ao presidente, pelo ministro da Defesa, a proposta de decreto que fazia a regência do malfadado art. 142 da CF-88, o dedo perverso do militarismo na Constituinte. Era o meio de consolidar juridicamente o golpe: as tropas, sob o pálio da Lei Maior, voltariam às ruas “para restabelecer a ordem” que elas mesmas haviam ajudado a decompor, e não se admitia prazo para seu retorno aos quartéis. O planejado é fácil de imaginar.

Sabe-se que o texto suicida foi recusado, por instância do ministro da Justiça, no “fio da navalha”.

Tudo isso me vem à baila quando o ministro da Defesa, surpreendentemente boquirroto para quem o conheceu de outros tempos, volta às folhas, às telas e às telinhas para incomodar a República e pôr em sobressalto a política. O sobressalto é justo, e compreensíveis são as variadas interpretações de seu discurso, pois não se trata de um político qualquer. Múcio tem história: expressão graduada da classe dominante pernambucana de raízes rurais, foi o candidato do regime militar contra Miguel Arraes em 1986 e se tornaria amigo e colaborador de Eduardo Campos, neto do patriarca. Deputado federal por cinco mandatos, transitou pelas siglas do sistema – ARENA, PDS, PFL e PTB – e assim chegou ao posto de ministro coordenador político no segundo mandato de Lula. Encerrou a carreira política como ministro do Tribunal de Contas da União, nomeado pelo mesmo Lula.

Suas falas são coisa séria, pois não consistem em palavras soltas ao vento. Trata-se, porém, de uma ventriloquia, e é preciso cuidar do dono da voz.

Em sua recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira 10, Múcio lembrou que teve familiares junto aos portões dos quartéis, naquela tentativa do bolsonarismo de criar a desordem servidora do objetivo de impedir a posse de Lula. Lembrou que, antes de assumir o ministério, procurara seu amigo capitão; precisava de sua ajuda, e a obteve, para abrir-lhe as portas fechadas dos comandos militares. Afinal, portou-se, ainda nesse programa, como o melhor dos defensores do capitão delinquente– cujo advogado, por sinal, já anunciou o pedido de juntada do programa de TV aos autos do processo de seu cliente, como a mais importante peça de sua defesa (vide O Globo da terça-feira 11).

O ministro falou em “prisão de inocentes” e aplicação de “penas arbitrárias”. Posando de jurista e juiz, defendeu uma nova dosimetria das penas, diferenciando os envolvidos conforme o grau de responsabilidade, como se isso não estivesse sendo observado – o que é uma forma a mais de condenar o processo. E insinuou haver excesso de condenações e de penas altas impostas pelo STF. “Você não pode condenar uma pessoa da mesma pena, quem armou, quem financiou e quem foi lá  inchar o movimento”. Quem o está fazendo? Segundo o ministro, “não havia ninguém armado”, porque ele não considera as facas, os bastões de ferro, as pedras, as bombas de gás lacrimogênio, os pesados extintores de incêndios etc.

Fez coro à defesa da anistia que os meliantes de todos os naipes reclamam, sob a alegação de que o País precisa ser “pacificado”. “Ninguém aguenta mais esse radicalismo”, afirmou, sem se dignar a explicar o que entende por “esse radicalismo”, nem apontar sua origem (qual seja, a campanha eleitoral de 2018 e o governo que a ela se sucedeu). Para o ministro, essa aberração política nos quadros de hoje ajudaria a “pacificar o País e reduzir a polarização”. A direita solta fogos.

Assim, não cogitou de discutir a alimentação desse radicalismo, hoje talvez ainda mais agudo do que nos tempos da campanha e do governo passado. Rejeitou, reiteradamente, qualificar o 8 de Janeiro como ataque à democracia ou tentativa de golpe. O ministro simplifica a história, qualificando-o como um “movimento” (não indica seu caráter) ainda em apuração.

Questionado sobre a participação das Forças Armadas nos atos, Múcio sugeriu que não houve tentativa de golpe, pois os militares não aderiram à invasão, mas não soube explicar por que os comandantes das Forças se recusavam a recebê-lo e por que o chefe da Marinha e do Exército não procederam à transmissão do cargo, a que estavam obrigados, e por que acoitaram nas portas dos quartéis os arruaceiros que, como parte decisiva da intentona, invadiram e depredaram as sedes dos três poderes..

A quem (e a que) aproveita tudo isso?

Se o presidente Lula não enquadrar o porta-voz da caserna no MD, parecerá, à opinião pública, que o está endossando – o que seria muito perigoso para o governo e a democracia.

Ouso sugerir aos assessores políticos do presidente que consultem a história recente do presidencialismo brasileiro, com suas insurreições, levantes militares e, principalmente, com sua longa e aparentemente interminável série de golpes e contragolpes – e neles, o papel insidioso da sublevação dos quartéis, cupim voraz na faina silenciosa de consumir a legalidade. A bibliografia, mesmo aquela dedicada aos temas mais recentes, como o golpe de 1º de abril de 1964, é vasta. Limito-me à indicação de um só título, o depoimento de Almino Afonso sobre o desmonte do governo Jango (1964 na visão do ministro do trabalho de João Goulart). Há ali uma lição: nenhum presidente da República, em nosso regime, sobrevive sem um sistema (chamava-se à época de “dispositivo”) militar sob seu comando – não só eficiente, como fiel. Neste caso, comando e fidelidade não se transferem.

Quando Jango se deu conta, já era tarde demais.

***

Miséria do jornalismo – Com o genocídio contra os palestinos de Gaza ainda em curso, e sem fim à vista, o Estado de Israel (sempre dedicado à sua “hasbará”) bancou a viagem de meia dúzia de jornalistas brasileiros à região onde ocorre o massacre. Como esperado, começam a aparecer nos “jornalões” nativos as contraprestações do passeio, pela mão dos coleguinhas que se prestaram a esse papel lamentável. Na terça-feira 11, O Globo publicou um texto (“O sentimento em Israel”) de um seu colunista que se arroga a oferecer “uma visão realista do que ocorre no Oriente Médio”. Passando ao largo do sofrimento indescritível da população trucidada, o autor reproduz, de cabo a rabo – e sem pejo de mentir –, o discurso oficial do enclave sionista. É de revirar o estômago. Como dizia o inesquecível Barão de Itararé, “todo homem que se vende recebe muito mais do que vale”.

Lenga-lenga? I – O projeto de exploração de petróleo na Margem Equatorial é indubitavelmente controverso, e desperta preocupações razoáveis em face do histórico brasileiro de destruição ambiental (que não tem poupado a Amazônia e suas populações), bem como da catastrófica crise climática a que o avanço sem freios do capitalismo nos tem levado – crise que se tem feito sentir de modo devastador, inclusive no Brasil. E é natural que sejam cobradas explicações a respeito, quando o País se prepara para sediar, em novembro próximo, a COP30.

Lenga-lenga? II – Nesse quadro, é de importância crucial, até pelo aspecto pedagógico, que o governo federal envolva a população em um debate amplo e democrático, no qual explique de modo acessível suas razões para apostar que a não exploração dessas reservas nos levaria a um colapso, sua certeza de que a Petrobras conduzirá a delicada operação de modo seguro e, ainda, o argumento – aparentemente contraditório – de que a abertura de novas frentes de extração de petróleo irá financiar a sonhada transição energética. Erra o presidente Lula ao desvalorizar ao debate, quando de debate tanto carecemos.

(Com a colaboração de Pedro Amaral)

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