Todos acompanharam a prisão do MC Poze do Rodo, ontem, 29/05. Para além do absurdo que é meter na cadeia quem canta a realidade implacável da favela, o episódio evidencia também os objetivos declarados e os objetivos reais do Direito Penal.¹

A prisão de um homem negro, de cultura periférica, justifica-se, no ordenamento penal e na mentalidade social, por sua suposta apologia ao crime e associação com uma facção criminosa no Rio de Janeiro. Num primeiro momento, parece legítimo, afinal, “quem comete crime tem que receber uma resposta, né?”, como justifica a mentalidade social e o próprio ordenamento jurídico. Uma suposta busca por neutralidade e uma leitura imparcial dos fatos. Uma objetividade bem simples: crime, resposta penal com base no código, ponto. Mas, numa segunda análise, materialista, baseada na luta de classes, não é bem assim.

A partir da prisão do Poze, vemos o que o direito penal brasileiro deixa latente, encoberto: ele age com o que faz de melhor: controlar e enclausurar pessoas negras. Esse é o objetivo real do ordenamento penal. Trata-se de compreender o direito penal a partir da sua funcionalidade concreta, afastando-se do que ele declara combater com neutralidade.

A prisão do MC escancara a reprodução do racismo como garantia de controle e manutenção da desigualdade. A justificativa para a manutenção de sua prisão temporária. em nome da garantia da ordem pública, nunca é usada quando essa mesma ordem é ameaçada por crimes de ordem econômica, principalmente cometidos por homens brancos e ricos.

O direito penal, na verdade, protege os homens brancos e ricos, ainda que estejam cometendo crimes, pois as penas pelos crimes graves que cometem são irrisórias e quase simbólicas. A prisão do cantor, midiática, inflada pelo populismo penal brasileiro, justamente por se tratar de alguém famoso e rico, serve como uma garantia de que o sistema de justiça permanece intacto em seus objetivos. O ordenamento garante a segurança até dos cometedores de crimes brancos, contra os criminosos negros.²

No direito penal real, todos cometem crimes, mas nem todos são criminalizados — principalmente os brancos, que raramente vão presos. Criminalizar, neste país de base escravocrata, significa prender corpos negros. E isso é uma resposta à sociedade: “Estamos prendendo quem vocês e o ordenamento querem que prendamos. Estamos torturando quem vocês querem que torturemos. Estamos humilhando quem vocês querem que humilhemos.” É uma resposta para a sociedade de que o negro precisa, sim, ser controlado, contido. Uma resposta para mais da metade da população que mal percebe que isso pode chegar dentro da sua casa.

Poze é criminalizável, assim como metade da população também o é. Poze não é criminoso por seus atos, mas porque é o seu corpo que garante a ideia de que o crime está sendo combatido — um corpo negro, da favela. Nunca se justifica o ordenamento com a prisão de um CEO branco, a não ser em casos excepcionais que servem para confirmar a regra: prender só preto.

É importante que nós, da esquerda, façamos a mea culpa também por todas as vezes que lutamos para que um novo tipo penal fosse criado, sem pensarmos quem seria o criminalizável. Nós também, muitas vezes, justificamos esse sistema penal excludente e seletivo, embora estejamos longe de sermos os principais responsáveis.

É urgente que, diante de episódios como a prisão de MC Poze, não apenas denunciemos a seletividade penal, mas reafirmemos a necessidade de lutar por outro modelo de justiça, um modelo que não tenha como base o encarceramento em massa, o racismo e a criminalização da pobreza. Enquanto o Direito Penal seguir sendo o braço armado do racismo estrutural, cada nova prisão como essa será um grito de alerta para que não sejamos cúmplices, mesmo que por omissão, da máquina de moer corpos negros que é o sistema penal brasileiro.

Notas

¹ Teoria Geral do Direito e Marxismo, Evgeni Pachukanis

² “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal”, Alessandro Baratta

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Last Update: 30/05/2025