Porto Alegre: da catástrofe climática a uma reconstrução catastrófica?
por Luís Carlos
As chuvas e enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul no último mês de maio produziram a maior catástrofe climática brasileira. O grande volume de chuvas provocou rapidamente inundações, alagamentos e um rastro de destruição ainda por se mensurar em sua totalidade e prolongamento. A singularidade deste evento resultou em 175 vidas perdidas, 478 municípios afetados e aproximadamente meio milhão de atingidos e deslocados climáticos – entre desabrigados, desalojados e, eventualmente, “refugiados” – em todo o estado.
Em Porto Alegre, o volume das águas do Guaíba foi crescendo ininterruptamente ao longo de dias, ao ponto de ultrapassar a marca histórica da enchente de 1941 – até então a maior da capital. Com o Centro Histórico e inúmeros bairros alagados, a tragédia ambiental se estendeu por mais de trinta dias, sendo que apenas no início de junho a cidade voltou a ter sua situação parcialmente normalizada. Em termos gerais, esta foi uma tragédia simultaneamente abrupta e gradual, mas não imprevisível.
O mundo já vem sentindo os impactos das mudanças climáticas e Porto Alegre não é exceção a essa realidade. Em 2015, por exemplo, as águas do Guaíba chegaram ao muro da Mauá. Este fenômeno se repetiu em setembro e novembro do ano passado, além dos violentos temporais de janeiro ocorridos em 2016 e 2024, evidenciando um padrão crescente de eventos climáticos extremos na região. As cheias do último ano serviram como um alerta ainda mais grave: o sistema de combate à enchente – que inclui bombas, comportas, diques, além do muro da Mauá – projetado para proteger a cidade contra inundações, mostrou-se falho e necessitando de urgente manutenção. Mesmo com este histórico recente, o governo local não providenciou nenhuma política preventiva quanto às causas e efeitos de eventos climáticos.
Não foi por ausência de alertas que políticas ambientais e climáticas preventivas não foram concebidas e implementadas. Como apontado por inúmeros técnicos e especialistas, tivesse o sistema passado pelas manutenções necessárias, os efeitos das cheias poderiam ter sido evitados ou minimizados. Este imobilismo ocorre tanto por negacionismo diante das mudanças climáticas, quanto pelo desmonte da administração pública. Governada nos últimos anos pela lógica dogmática implacável das políticas neoliberais, Porto Alegre perdeu capacidade técnica para execução de políticas públicas. A contínua substituição de profissionais concursados por trabalhadores terceirizados e precarizados, levou a uma fragilidade estrutural da prefeitura em responder a muitas necessidades básicas, que se tornam mais evidentes em um momento de crise como este.
É verdade que muitas das causas da crise climática demandam soluções globais. Seguramente um conjunto de ações locais, um tanto desarticuladas ou desorientadas, não será capaz de superar os impasses abertos na era do Antropoceno, onde a humanidade reconhece os efeitos destrutivos de suas ações nos últimos séculos em uma escala geológica no planeta, colocando em risco a própria continuidade da vida humana e de outras espécies. Reconhecer a grandeza da escala do problema não deve conduzir a uma atitude de paralisia, mas a um aumento da responsabilidade coletiva e seu sentido de urgência, para o qual ações locais são possíveis e necessárias.
O processo de reconstrução deveria ser um momento de ajuste de rota. Preparar a cidade para a nova conjuntura climática demanda políticas ambientais que deveriam minimamente partir de um tripé formado por ações de proteção, adaptação e mitigação. Pouco ou nada disso se vê nos planos de reconstrução apresentados até agora, restando a mera reprodução do que já deu errado. Pior ainda, alguns sinais indicam um possível agravamento do cenário.
O governador Eduardo Leite e o prefeito Sebastião Melo adotaram uma estratégia comum de contratarem empresas estrangeiras de consultoria, como a Alvarez & Marsal (A&M) e a Mckinsey, com o fim de orientar seus planos de reconstrução e auxiliar seus governos a se desresponsabilizarem dos previsíveis processos de “litigância climática” que se abrirão. Conhecida pela participação no processo de reconstrução de New Orleans, nos Estados Unidos, após a passagem arrasadora do furacão Katrina em 2005, a A&M se especializou em um tipo de “capitalismo de desastre”, como sugeriu Naomi Klein no livro A doutrina do choque. Isso ocorre quando gestores privados e públicos se utilizam de experiências de choque – como catástrofes – para fazer avançar oportunidades de negócios de maneira que, em situações de normalidade, não seria possível.
Caso prosperem projetos baseados em grandes obras, como enormes canais de drenagem e barragens para reter e desviar águas dos rios, implicando amplas alterações no ambiente, temos o risco de intensificar a degradação ambiental, tornando a própria reconstrução um vértice de catástrofes. Como apontam grupo de professores do Instituto de Biocências da UFRGS, em recente carta publicada na revista científica Nature, devemos ir para um caminho oposto a este: “O momento em que vivemos exige mais que a redução dos impactos de nossas atividades e a proteção dos ambientes naturais que nos restam, exige também a recuperação de áreas degradadas e ocupadas inadequadamente”. Somente com políticas ambientais decididas de mitigação, adaptação, proteção, mas também de recuperação, poderemos ter uma Porto Alegre menos vulnerável a eventos climáticos.
Luís Carlos é historiador e doutorando do PPGH da UFRGS.
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