Friedrich Merz, da CDU, a União Democrata-Cristã, é o favorito para ocupar o cargo de chanceler da Alemanha. Se as projeções se confirmarem, todos os holofotes estarão sobre ele nas eleições de 23 de fevereiro, mas nada no brilho dessa provável vitória afastará a sombra que a rival Alice Weidel, do partido de extrema-direita AfD, o Alternativa para a Alemanha, projeta sobre os próximos capítulos dessa história.

Weidel lidera a mais forte, prolongada e sustentável ascensão de um partido de extrema-direita na Alemanha desde o fim do nazismo. A AfD conseguiu introduzir pela porta da frente da política o ultranacionalismo, a islamofobia e o euroceticismo antes confinados em guetos do debate nacional, e agora aparece em segundo lugar no agregado das principais pesquisas, com 21% das intenções de voto, logo atrás da CDU de Merz, que tem 30%. Pode não ser o suficiente para ganhar, mas é bastante para influenciar os rumos do país.

A trajetória da AfD na Alemanha repete o roteiro seguido por outras legendas do tipo na Europa. O partido foi criado em 2013 por um grupo de eurocéticos que buscavam promover uma pauta economicamente liberal. Na eleição daquele ano, o desempenho da sigla, então nanica, foi pífio – não conquistou um único assento no Parlamento. Logo na eleição seguinte, em 2017, a AfD recebeu, no entanto, 12,6% dos votos e tornou-se o primeiro partido de extrema-direita a entrar no Bundestag desde o fim da Segunda Guerra Mundial: amealharam 94 das 631 cadeiras existentes à época (que só passariam a ser as 709 atuais após a reforma política de 2023).

Entre o fracasso completo de 2013 e o sucesso inédito de 2017, ocorreu a chamada crise migratória de 2015, quando a então chanceler Angela Merkel, do mesmo partido de Merz, bancou uma política solidária em relação a milhares de refugiados sírios. Percebendo o rechaço da sociedade alemã em relação aos sírios e a nacionais de outros países em guerra que chegavam, como os afegãos e cingaleses, a AfD converteu o nacionalismo e as pautas de segurança no cavalo de batalha com o qual tem avançado sem freios desde então.

Sombra. Merz é o favorito, mas Weidel é a novidade da campanha – Imagem: Tobias Koch e Redes sociais

As forças políticas tradicionais passaram os últimos anos tratando a AfD como companhia tóxica. Evocaram durante algum tempo o argumento do “cordão sanitário” ou da “porta corta-fogo”, como metáforas de barreiras que não podem ser quebradas entre o que seriam as legendas aceitáveis no espectro político e o radicalismo inadmissível da extrema-direita. Mas essa postura, de não fazer alianças, não resistiu ao derradeiro teste da política, o poder do voto.

A primeira fissura nessa barreira apareceu em fevereiro de 2020, quando ­Thomas Kemmerich, então integrante do tradicional FDP (Partido Democrático Liberal), fez uma aliança com a AfD para construir uma coalizão governista na região da Turíngia. O acordo provocou a repulsa no mainstream político alemão, expressado por uma cena algo dramática, na qual a deputada regional ­Susanne Hennig-Wellsow, do partido chamado A Esquerda (Die Linke) atirou ao chão um buquê de flores que devia ser entregue a Kemmerich, no plenário da Assembleia local. A imagem foi usada como um resumo da postura da sociedade como um todo àquela coalizão.

Merkel, cujo partido também foi arrastado à época para essa aliança regional improvável, em companhia da FDP de Kemmerich, disse, da África do Sul, onde se encontrava em visita oficial, como chanceler, que o episódio era “imperdoá­vel” e marcava “um mau dia para a democracia”. Diante de tamanho escândalo, Kemmerich teve de renunciar, depois de ter passado somente 24 horas no cargo.

Parecia que o escorregão na Turíngia tinha sido um episódio tão isolado quanto didático para o mainstream político alemão, até que, em 29 de janeiro, Merz, de olho nas eleições nacionais que se aproximam agora, decidiu propor no Bundestag duas moções sobre imigração. Com elas, pretendia atrair a simpatia de um eleitorado crescentemente nacionalista e rea­cionário, que vinha se bandeando cada vez mais para o lado da AfD. As moções tratavam de aumentar a segurança nas fronteiras e impulsionar deportações. Ambas receberam apoio entusiasmado da legenda de extrema-direita, que passou a se declarar feliz por trabalhar numa pauta em comum com a tradicional CDU, alardeando o que foi apresentado como o fim definitivo da tal “barreira sanitária”.

Pouco a pouco, a política tradicional trocou a repulsa pelas alianças com os radicais

Enquanto a AfD cresce, a Alemanha vê explodir os casos de violência ultranacionalista e antissemita. O próprio partido foi colocado sob investigação por suspeita de tentar enfraquecer a Constituição, oito meses depois de o Ministério da Defesa da Alemanha ter extinguido uma companhia de Forças Especiais por envolvimento com o nazismo. O grupo de 350 militares promovia encontros com símbolos nazistas e desviava armas e munições do Exército. A sigla nega qualquer conexão com esses casos, mas Alexander ­Gauland, uma das figuras mais conhecidas da AfD, disse em junho de 2018 que “Hitler e os nazistas foram apenas uma partícula de merda de pássaro em mais de mil anos de história alemã de sucesso”.

Para crescer, a AfD teve de se livrar do peso dessas declarações, e Weidel apareceu como a figura talhada para essa função: é uma economista de perfil dinâmico e cosmopolita, lésbica, casada com uma cingalesa, mãe de dois filhos, com doutorado em Desenvolvimento Internacional e domínio do mandarim, por ter vivido e trabalhado na China.

Fenômeno parecido ocorre na França com a antiga Frente Nacional, que passou a se chamar Reunião Nacional a partir de 2018. A maquiagem foi acompanhada por uma sucessão geracional. ­Marine Le Pen, menos agreste, assumiu o lugar do pai, o rude e antissemita Jean-Marie Le Pen, morto em 7 de janeiro deste ano. A sigla passou ainda a dar espaços a jovens como Jean Bardella, nascido em Drancy, na periferia de Paris, criado em um conjunto habitacional de baixa renda, filho de imigrantes e militante extremista desde os 16 anos.

Vai longe o tempo em que a extrema-direita era tratada como uma anomalia de países da periferia da Europa, como a Hungria de Viktor Orbán. Esse setor político, que puxou o Reino Unido para fora da União Europeia com o Brexit, no referendo de 2016, colhe agora o melhor desempenho de sua história, com o partido Reform UK, de Nigel Farage, alcançando, em 11 de fevereiro, o topo das intenções de voto, no agregado das pesquisas: 26%, à frente dos trabalhistas (25%) e dos conservadores (22%).

Ainda é cedo para a extrema-direita cantar vitória, mas é tarde demais para fazer de conta que essas ondas de aproximações sucessivas não resultarão em triunfos cada vez mais inquestionáveis na Europa. •

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Portas abertas’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 13/02/2025