Por uma Agenda Civil Comum para os BRICS em um Sistema Multipolar, por Samuel Spellmann

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Por uma Agenda Civil Comum para os BRICS em um Sistema Multipolar

por Samuel Spellmann

A feição atual do sistema internacional está marcada por uma profunda crise de governança, onde estruturas arcaicas e unilaterais mostram-se incapazes de responder aos desafios globais. No centro desta crise está a arquitetura financeira e tributária internacional, historicamente moldada para servir a interesses específicos. Em novembro passado, a reunião do G20 na África do Sul destacou, mais uma vez, a marginalização dos países em desenvolvimento nas decisões cruciais que afetam suas economias. É neste contexto que o bloco BRICS+ emerge não apenas como um fórum geopolítico, mas como uma plataforma potencial para a construção de alternativas concretas e soberanas a partir do Sul Global.

Na última semana, entre 01 e 04 de dezembro, foi realizado o Encontro do BRICS Civil Popular na cidade do Rio de Janeiro, do qual participei como representante do Grupo de Trabalho de Finanças. Como coletivo, o grupo identificou três eixos prioritários para que possamos falar em transformação do sistema internacional. Adiciono também uma quarta seção, dedicada ao papel do planejamento nacional para o desenvolvimento.

Justiça Tributária Internacional

A primeira delas é a justiça tributária internacional. É intolerável que, anualmente, bilhões de dólares escapem dos cofres públicos dos países em desenvolvimento por meio de evasão e elisão fiscal, perpetuando o subfinanciamento de políticas sociais e ambientais. É imperativo que os BRICS apoiem incondicionalmente a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional, um fórum verdadeiramente inclusivo, e promovam a taxação efetiva de grandes fortunas. A justiça fiscal é a base da justiça social.

O BRICS não é apenas um grupo de países emergentes; é um incubador de coalizões em temas onde a governança global está falhando. Um exemplo concreto é a proposta liderada pelo Ministério da Fazenda brasileiro para criar uma coalizão de países para integrar mercados regulados de carbono, discutida tanto no âmbito do BRICS quanto em fóruns como a COP30.

Essa iniciativa busca harmonizar instrumentos de precificação de carbono com mecanismos de redistribuição de renda, criticando medidas unilaterais e discriminatórias. Ela ilustra como o bloco pode articular pares do Sul Global e até parceiros desenvolvidos em torno de agendas concretas que desafiam a lógica fragmentada dominante. A formação de tais coalizões setoriais – em clima, taxação, saúde digital – é talvez a contribuição mais imediata do BRICS para um multilateralismo renovado. Elas permitem contornar o imobilismo das instituições tradicionais e criar fatos novos na governança global.

Comércio e Investimentos Intrabloco

Segundo, o comércio e os investimentos intrabloco devem ser reorientados. Para além de aumentar o volume, é crucial qualificar esses fluxos. Isso significa priorizar investimentos produtivos, cadeias de valor inclusivas e a expansão do uso de moedas nacionais, reduzindo a dependência do dólar e fortalecendo a soberania financeira. A criação de um sistema de pagamentos em moedas locais, apoiado em tecnologias como blockchain, não é uma mera inovação técnica, mas um passo estratégico para uma integração econômica mais autônoma e resiliente.

A dependência do dólar é o calcanhar de Aquiles da autonomia financeira do Sul Global. A hierarquia monetária liderada pelo dólar gera volatilidade cambial e crises recorrentes para economias periféricas, além de permitir seu uso como “arma” geopolítica.

O presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, Dilma Rousseff, criticou explicitamente o “uso do dólar como arma” para conter economias emergentes. A desdolarização, portanto, não é um projeto romântico, mas uma necessidade estratégica. O objetivo, como aponta análise do OPEB, não é substituir completamente o dólar, mas criar alternativas que reduzam a vulnerabilidade política e econômica.

O BRICS já avança nesse sentido: a presidência brasileira prioriza a criação de um sistema de pagamentos alternativo ao SWIFT, usando moedas locais e blockchain. Acordos de swap cambial, como o entre Brasil e China, permitem transações diretas em real e yuan. O desafio é enorme, dada a liquidez e a rede de confiança do dólar, mas cada transação liquida em moeda local é um tijolo na construção de um sistema monetário multipolar.

Fortalecimento de Estruturas Existentes

Terceiro, é hora de fortalecer e reformar as instituições financeiras próprias do bloco. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA) são conquistas fundamentais, mas precisam cumprir seu potencial.

O NDB deve diversificar suas fontes de captação, desafiando o oligopólio das agências de rating ocidentais, talvez através da criação de uma agência de classificação de crédito alternativa que incorpore métricas de justiça social e risco climático.

O CRA, por sua vez, precisa ser ativado e reformado, reduzindo sua vinculação ao FMI e permitindo operações em moedas locais, tornando-se um verdadeiro guarda-chuva de liquidez para os países membros.

O Papel do Planejamento Nacional

Em quarto lugar, a agenda dos países BRICS+ é vasta e complexa, englobando ainda a promoção de fintechs responsáveis e a governança da inteligência artificial no setor financeiro. No entanto, o princípio orientador é claro: a multipolaridade não será real até que se expresse em sistemas financeiros e comerciais alternativos, baseados em solidariedade, soberania e desenvolvimento sustentável.

Os BRICS, impulsionados não apenas por seus governos, mas por uma sociedade civil organizada e propositiva, têm a oportunidade histórica de pavimentar esse caminho. O momento de transformar discurso em ação é agora.

A presidência do BRICS é uma janela de oportunidade que exige mais do que diplomacia reativa; demanda um planejamento estratégico nacional integrado. Sem essa visão estratégica, o risco é que a participação no BRICS se limite a um ativismo internacional desconectado das urgentes necessidades de desenvolvimento interno. O planejamento é a ponte entre a projeção global e a transformação doméstica.

A proposta de uma bolsa de grãos do BRICS é um exemplo perfeito de como o bloco pode criar pilares comuns de soberania. Aprovada na Cúpula de Kazan em 2024, a ideia é desenvolver em 2025 um conceito para uma plataforma de negociação comum entre os maiores produtores e consumidores globais. Trata-se de um ativo geoeconômico compartilhado que fortalece a segurança alimentar e a autonomia financeira do bloco.

Conclusão: Da Multipolaridade Abstrata à Construção Concreta

O BRICS enfrenta o desafio de transformar sua retórica multipolar em instituições e instrumentos funcionais. A jornada passa necessariamente pela formação de coalizões pragmáticas, pela construção paciente de alternativas ao dólar, pela definição de um projeto nacional claro para o Brasil e pela materialização de pilares comuns, como a bolsa de grãos. A sociedade civil, através de grupos como o BRICS Civil Popular, tem um papel vital em pressionar por essa agenda transformadora e em monitorar sua implementação. O momento é de ousadia planejada. A presidência brasileira de 2025 não pode ser apenas um evento protocolares; deve ser o catalisador de um salto estratégico que reposicione o Brasil e seus parceiros no centro de um sistema internacional mais justo, diverso e soberano. A tarefa é colossal, mas o preço da inação é a perpetuação de uma ordem que já mostrou seus limites.

Samuel SpellmannUniversidade Federal do Pará.

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