“Que o governo implante a reforma agrária com a participação dos trabalhadores como única forma de acabar com a violência no meio rural.” A reivindicação consta no documento final do primeiro Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado pelo MST há quase 40 anos, entre 29 e 31 de janeiro de 1985. De lá para cá, 400 mil famílias foram assentadas, mas o processo permanece inconcluso: outras 70 mil seguem acampadas, à espera de um lote para plantar e garantir a subsistência. A paz no campo também parece um sonho distante. Milícias de fazendeiros intimidam os que seguem na luta por um pedaço de terra. Mesmo quem já conquistou o seu quinhão vive sob ameaça constante de grileiros e pistoleiros, como prova o recente ataque ao assentamento Olga Benário, em Tremembé, no interior paulista, que resultou na morte de dois agricultores: Gleison Barbosa e Valdir Nascimento, o Valdirzão.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, 2023 foi um dos anos mais violentos do período recente para os camponeses, quando foram registrados 31 assassinatos e 1.056 conflitos por terra e água. Em 2024, o número de mortes caiu para 12, mas as disputas aumentaram, e ganharam novos contornos. Agora os assentados também são alvo de incêndios criminosos e tentativas de invasão promovidas pela especulação imobiliária – em Tremembé, por exemplo, os pistoleiros pretendiam tomar um lote para abrir um condomínio residencial. O cerco estende-se ao Congresso Nacional, onde tramitam mais de 20 projetos para criminalizar a luta dos sem-terra, vários deles já aprovados pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, presidida pela bolsonarista Caroline De Toni, do PL, uma das intransigentes defensoras da propriedade privada, acima de qualquer outro direito. “Esse cenário tende a se agravar, porque é uma disputa política desigual”, lamenta Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST. “Temos a legislatura mais reacionária desde o fim da ditadura.”
A boa vontade com o governo Lula também está por um fio. No fim do ano passado, João Pedro Stedile, um dos fundadores do MST, não escondeu o descontentamento com a demora na retomada do programa de reforma agrária, após o desmonte promovido nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. “Ela está absolutamente parada nesses dois anos. Todo mundo tem as suas desculpas. ‘Ah, tivemos que remontar o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ah, não tivemos orçamento no primeiro ano’. Tudo bem, nós somos pacientes, mas isso pode explicar a inoperância do primeiro ano. Mas já estamos no fim do segundo e, em 24 meses, avançou quase nada”, afirmou, em entrevista ao Repórter Brasil.
“Em 24 meses, avançou quase nada”, disse Stédile, ao criticar a letargia do governo Lula
Na quinta-feira 23, após a conclusão desta reportagem, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, deve participar da reunião da coordenação nacional do MST em Belém. Na ocasião, ele vai detalhar o plano de investimento do governo federal para retomar a reforma agrária. A CartaCapital, o ministro antecipou a destinação de 3,2 bilhões de reais para a aquisição de terras e outro 1,5 bilhão de reais para investir nos assentamentos neste ano. Teixeira reconhece que os recursos tardaram a ser disponibilizados, mas por circunstâncias alheias à sua vontade. “Tudo estava paralisado desde 2016. O MDA foi extinto, o Incra acabou esvaziado. Foi ditada uma normativa impeditiva da reforma agrária. Recebemos o orçamento de 2023 sem um tostão para obtenção de terras. Lutamos e conseguimos aumentar esse orçamento para 2024, mas ainda assim foi modesto, e o recurso demorou a chegar. Agora, está tudo pronto para as entregas. Isso permite retomar o programa de reforma agrária de maneira robusta”, afiança (leia a entrevista completa à pág. 26).
Após o ataque ao assentamento Olga Benário, Teixeira solicitou ao ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a inclusão da Polícia Federal na Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo, para reforçar o seu núcleo de inteligência. Reinstalado por Lula em novembro de 2023, o colegiado tem encaminhado agricultores ameaçados para um programa de proteção, o que contribuiu para a expressiva redução das mortes em conflitos agrários verificada no ano passado, reconhece Valéria Pereira dos Santos, da coordenação da CPT. Ela alerta, porém, que os grupos paramilitares responsáveis por atentados em assentamentos e áreas quilombolas estão cada vez mais sofisticados e fortalecidos, e por isso é urgente uma ação mais efetiva do Estado. “O Movimento Invasão Zero está por trás de vários conflitos. Eles têm CNJP e escritórios ativos em muitas localidades. Atualmente, estão mais fortes em Goiás, Mato Grosso e Bahia. Em muitos casos, contam com respaldo político nas Assembleias Legislativas”, observa. “A sociedade percebe com facilidade os ataques contra os movimentos sociais no Congresso Nacional, mas nas Câmaras estaduais também há inúmeros projetos de criminalização da luta pela terra sendo aprovados.”
Ayala Ferreira, dirigente do setorial de direitos humanos do MST, avalia que a tentativa de criminalizar o movimento na CCJ da Câmara é um desdobramento da CPI do MST, realizada em 2023. “Depois disso, vários parlamentares da extrema-direita se posicionaram em comissões que consideram estratégicas para defender os interesses dos ruralistas.” Diante do cenário adverso, os trabalhadores sem-terra elaboraram um robusto dossiê sobre a violência do Invasão Zero contra os assentamentos e acampamentos dos sem-terra e o encaminharam ao Ministério da Justiça, à época comandado por Flávio Dino, hoje do Supremo Tribunal Federal. “Fizemos denúncias na Ouvidoria Agrária e apresentamos vários casos de violência em todas as instâncias pertinentes. Nenhum membro do governo pode alegar que não tem ciência do que está acontecendo”, indigna-se a dirigente.
Teixeira garante já ter acionado o Ministério Público Federal, mas a representante da CPT teme que a investigação se arraste indefinidamente. “Nosso medo é que a atuação desse grupo leve a um agravamento ainda maior da violência no campo”, afirma Santos. Segundo ela, o Invasão Zero é uma organização complexa composta de sindicatos rurais patronais, policiais militares destacados para a Patrulha Rural e empresas privadas de segurança. “Tem todas as características do que foi a União Democrática Ruralista dos anos 1980”, diz, referindo-se à milícia rural fundada por Luiz Antônio Nabhan Garcia, que mais tarde foi nomeado secretário de Assuntos Fundiários do governo Bolsonaro e segue atuante em defesa do latifúndio.
No Congresso Nacional, há expectativa de melhora no cenário a partir de fevereiro, a depender da nova composição da CCJ, explica o deputado federal Orlando Silva, que integra da Comissão. “No último período, a CCJ foi presidida por uma deputada alinhada ao bolsonarismo, que buscou impor a agenda reacionária da extrema-direita, com perseguição aos movimentos sociais, principalmente ao MST, mas também pautas contrárias aos direitos das mulheres, da comunidade LGBTQIA+ e outros retrocessos”, explica. Para o parlamentar, a melhor forma de mudar essa conjuntura é ampliar o diálogo. “Não podemos deixar o centro formar bloco com a extrema-direita, pois aí eles consolidam maioria. Por isso, é necessário amplitude, capacidade de diálogo e fazer a leitura política adequada a cada momento.”
A CPT captou uma redução das mortes e um aumento do número de conflitos no campo em 2024
Apesar do cerco, Gilmar Mauro acredita ser possível aproximar cada vez mais o MST da sociedade com o fomento a uma nova forma de produção, baseada nos princípios da agroecologia. “Não queremos apenas a distribuição de terra, é preciso estabelecer uma forma sustentável de agricultura, ou vamos colapsar.” Na avaliação do dirigente, o MST só conseguiu sobreviver até aqui e ampliar sua capilaridade graças à pluralidade que marca o movimento desde o seu nascedouro. “Todos participam, inclusive mulheres, jovens e crianças.” Para os pequenos, aliás, existe um segmento específico, o “Sem-terrinha”, no qual, em meio a brincadeiras e atividades lúdicas, a luta pela terra é levada muito a sério, eles têm até um jornal.
Além da reforma agrária, o movimento propõe-se a discutir formação política, saúde, meio ambiente, questões de gênero e educação. Esse último item é uma ferramenta de aproximação com a sociedade, uma vez que os trabalhadores sem-terra replicam o método de alfabetização cubano, inspirado em Paulo Freire, para combater o analfabetismo em áreas pobres e países em desenvolvimento. Essa comunicação propositiva é um dos elementos fundamentais do movimento, explica o dirigente. “Entendemos que sem alianças políticas não seria possível avançar com a reforma agrária, então estabelecemos alianças com diversos setores da sociedade.” •
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Por todos os lados’