Por que passar de IP V4 para IP V6 é questão de vida ou morte?
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
INTRODUÇÃO
Endereço IP (Internet Protocol) é um conjunto formado por quatro blocos numéricos separados por pontos. Cada bloco pode assumir qualquer valor entre 0 e 255. Isso significa que o menor endereço possível é 0.0.0.1, e o maior, 255.255.255.255. Esse modelo de endereçamento corresponde ao que se chama hoje de IPv4 e permite cerca de 2³² combinações, algo acima de quatro bilhões de endereços distintos.
Nos anos 1980, acreditava-se que isso seria mais do que suficiente para acomodar toda a demanda global. A internet ainda era voltada a universidades, centros de pesquisa e algumas grandes corporações. Não se imaginava que, poucas décadas depois, todos os cidadãos do mundo, todas as empresas e todos os aparelhos eletrônicos passariam a requerer um endereço IP próprio para funcionar. Quando a rede saiu do ambiente acadêmico e invadiu lares, escritórios e, depois, objetos do cotidiano, ficou evidente que quatro bilhões de endereços estavam longe de dar conta.
O primeiro improviso para evitar o colapso foi a criação do IP dinâmico. Ele parte da premissa de que as pessoas não ficam conectadas o tempo todo. Assim, quando alguém se desconecta, libera seu endereço, que passa a ser usado por outra pessoa. É como um estacionamento rotativo: não há vaga fixa, mas as vagas vão sendo reutilizadas conforme os carros entram e saem. Esse mecanismo deu uma folga momentânea, mas durou pouco. A multiplicação de dispositivos — celulares, computadores pessoais, impressoras, televisores — logo consumiu também essa margem.
Veio, então, a segunda gambiarra: as redes locais com tradução de endereços, conhecidas tecnicamente como NAT. Nessas redes, um único endereço IP público é compartilhado por um grande número de usuários internos. Cada aparelho recebe um endereço privado, válido apenas dentro daquela rede, e o roteador se encarrega de traduzir e encaminhar o tráfego para fora. Em termos práticos, é como um condomínio com milhares de apartamentos, todos usando a mesma portaria para entrar e sair.
Essas redes privadas permitem integrar localmente um grande número de dispositivos. Máquinas industriais puderam ser coordenadas dentro de uma fábrica; equipamentos médicos passaram a transmitir sinais contínuos, permitindo enfermarias virtuais; sistemas de vigilância, climatização e logística passaram a se comunicar entre si. Essa automação só se viabilizou porque, dentro de um ambiente fechado, o roteador esconde centenas ou milhares de aparelhos atrás de um único endereço público.
Mas essa solução opera apenas enquanto se permanece dentro do recinto. É como um ramal telefônico interno: excelente para comunicação local, mas invisível para o exterior. Seria possível, em tese, alcançar uma máquina do outro lado do mundo; porém, o tráfego esbarraria na mesma roleta que impede que múltiplos dispositivos — todos compartilhando o mesmo endereço público — sejam acessíveis diretamente. A barreira não é somente de saída: é também de entrada. O mundo exterior não vê para dentro.
No início dos anos 2000, tornou-se claro que a vaca ia para o brejo. A multiplicação de dispositivos conectados tornava inevitável um congestionamento permanente. E isso não afetava apenas máquinas industriais: serviços usados por milhões de pessoas, como streaming, internet banking, transações comerciais e videoconferências, passaram a disputar os mesmos canais de saída das redes privadas. Todos exigem conexões estáveis e previsíveis — e é justamente isso que o compartilhamento forçado de endereços começa a comprometer.
A expansão da internet deixou de ser medida pelo número de usuários e passou a ser medida pelo número de dispositivos — e ambos cresciam rapidamente. Nesse cenário, as soluções improvisadas se mostraram insuficientes. Era necessário criar um novo sistema de endereçamento, sem roletas e sem gambiarras, capaz de fornecer um endereço verdadeiro, exclusivo e global para cada dispositivo e para cada pessoa, sem limitar o crescimento da rede. Esse sistema recebeu o nome de IPv6.
O IPv6 E A TRANSFORMAÇÃO DA INFRAESTRUTURA DIGITAL
O IPv6, a sexta versão do protocolo de internet, foi criado para substituir definitivamente o IPv4. Enquanto o IPv4 utiliza 32 bits para formar seus endereços, o IPv6 utiliza 128 bits, o que resulta em um número com 39 algarismos — vasto o suficiente para que nunca faltem endereços. O objetivo do IPv6 não é apenas ampliar a quantidade de combinações disponíveis, mas alterar a lógica de funcionamento da rede.
Com o IPv6, desaparece a necessidade de esconder milhares de equipamentos atrás de um único endereço público. Hidrômetros, relógios de luz, câmeras, luminárias inteligentes, máquinas hospitalares e sensores agrícolas podem ser vistos pela rede como entidades próprias, cada uma com seu endereço estável e permanente.
Esse salto é o que torna possível a expansão plena da Internet das Coisas. Com o IPv6, cada hidrômetro, cada medidor de energia e cada sensor de consumo pode registrar dados em tempo real, emitir alertas de falhas e até ajustar automaticamente tarifas por faixa horária. Os medidores deixam de ser equipamentos passivos e se tornam instrumentos inteligentes, eliminando a necessidade do leiturista e combatendo fraudes.
Semáforos também se tornam verdadeiramente inteligentes. Para isso, precisam receber dados de fluxo em tempo real, ajustar tempos conforme densidade do tráfego, sincronizar-se com outros cruzamentos, comunicar-se com centros operacionais e atualizar firmware à distância. Tudo isso depende de endereçamento direto e confiável — algo inviável no IPv4.
Até mesmo o controle de tráfego aéreo pode dar um salto com o IPv6. Com telemetria integrada, checagens automáticas de rota, altitude e velocidade e emissão instantânea de alertas preventivos, reduz-se drasticamente a margem de erro humano. Esse tipo de integração depende de endereçamento abundante, robusto e direto — exatamente o que o IPv4 não pode oferecer.
OS RISCOS DO ATRASO BRASILEIRO
O Brasil possui o sistema bancário mais informatizado e automatizado do mundo. Enquanto aposentados nos Estados Unidos ainda recebem benefícios por cheques enviados pelo correio, aqui o dinheiro cai diretamente na conta, e o usuário quita suas despesas com PIX em poucos segundos. Nenhuma outra economia conseguiu universalizar pagamentos digitais instantâneos como o Brasil.
Mas há um ponto crítico: todo o sistema financeiro nacional, do PIX às transações internacionais, depende de endereços IP estáveis, previsíveis e de alta disponibilidade. Quando a infraestrutura depende de IPv4 compartilhado, surgem gargalos: NATs sobrecarregados, conflitos de portas, perda de pacotes e quedas momentâneas que obrigam repetições de transações. PIX não combina com improviso; exige endereçamento direto, limpo, global e sem disputa.
Não é apenas o setor financeiro: streaming, e-commerce, videoconferências e qualquer operação crítica dependem de estabilidade contínua. Quando milhares de usuários dividem o mesmo endereço IPv4 dentro de uma operadora, ocorrem colisões de sessões, degradação de qualidade e queda na segurança e na rastreabilidade. Tentamos operar a economia digital do século XXI sobre um sistema projetado nos anos 1980.
CONCLUSÃO
O Brasil fez algo que poucos países conseguiram: colocou toda a sua população dentro do sistema financeiro digital. Aposentadorias são creditadas automaticamente, contas são pagas por aplicativo e qualquer compra pode ser quitada com um PIX que leva menos de um segundo.
Porém, ninguém constrói arranha-céus com alicerces de madeira. E é isso que estamos fazendo ao manter boa parte de nossa infraestrutura presa ao IPv4.
A economia brasileira já opera em escala de IPv6. O sistema bancário já pensa em IPv6. A Internet das Coisas — urbana, industrial, agrícola, médica — só funciona com IPv6. E, no entanto, continuamos obrigando todas essas camadas a passar por um funil de endereços antigos, herdados de uma internet artesanal dos anos 1980.
A transição para o IPv6 não é capricho técnico; é condição para que o Brasil continue avançando. Com o IPv6, cada dispositivo tem um endereço único e direto; cidades tornam-se inteligentes; hospitais conectam equipamentos sem intermediários; indústrias operam redes autônomas; o sistema financeiro ganha estabilidade e precisão.
Chegamos ao ponto em que não se trata mais de adotar o IPv6. Trata-se de não regredir. Trata-se de garantir que o Brasil continue no futuro que ele próprio começou a construir.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Affairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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