Reunião no Congresso. Foto: Divulgação

Por Washington Araújo

Começo este artigo com uma pergunta que ecoa como um grito abafado: por que o Congresso Nacional, eleito para representar o povo, parece tão mega desconectado dos anseios dos mais pobres?

Como jornalista, pesquisador e professor universitário, já vi muitas vezes a balança da justiça pender para quem tem mais poder econômico. Tendo trabalhado no Senado Federal por mais de 19 anos, observo que está acontecendo no Congresso brasileiro é muito mais do que uma inclinação: é uma ofensiva deliberada contra os interesses de quem ganha até dois salários mínimos, de motoristas de aplicativo, terceirizados, mães solo, trabalhadores informais e desempregados.

É inegável que Suas Excelências, majoritariamente abastadas, protegem seus privilégios. Projetos de lei que desafiam sua visão patrimonialista, ameaçando sua fortuna, são enfrentados como ataques diretos, perpetuando a exclusão dos pobres, cujas vozes ecoam sem resposta no Congresso.

Essa frase ressoa enquanto analiso cinco projetos de lei que, se aprovados, poderiam elevar significativamente a qualidade de vida dos mais pobres, mas que estão parados, arquivados ou avançam a passos de tartaruga na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Esses projetos, aliados a uma radiografia das bancadas parlamentares e dos lobbies que dominam o Congresso, revelam uma verdade incômoda: os pobres não têm porta-vozes. Os interesses dos ricos – agropecuaristas, banqueiros, industriais e aliados das bancadas da Bíblia e da Bala – prevalecem, enquanto a maioria da população segue sufocada por impostos regressivos e políticas que perpetuam a desigualdade.

Cinco projetos de lei que poderiam mudar vidas, mas estão travados

1. PDL sobre a suspensão do aumento do IOF (2025)

Em 25 de junho de 2025, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL 214/2025), de autoria do deputado Zucco (PL-RS), que suspendeu os efeitos de três decretos presidenciais (12.466/2025, 12.467/2025 e 12.499/2025) editados pelo governo Lula para aumentar as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).

Esses decretos, anunciados a partir de 22 de maio de 2025, visavam arrecadar até R$ 30 bilhões em 2025, taxando operações financeiras, incluindo investimentos no agronegócio e no setor imobiliário, para compensar a isenção de Imposto de Renda (IR) para rendas até R$ 5.000 mensais (PL 1087/2025). A votação relâmpago, anunciada pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), na noite de 24 de junho, pegou o governo de surpresa e consolidou uma derrota significativa do Executivo.

Tramitação: Na Câmara dos Deputados, o PDL foi aprovado em 25 de junho por 383 votos a 98, em uma sessão semipresencial esvaziada devido às festividades de São João. O substitutivo do relator, deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), ampliou o escopo do projeto original (PDL 314/2025), sustando os três decretos presidenciais.

No mesmo dia, o Senado aprovou o texto por votação simbólica, com votos contrários apenas dos senadores do PT, sob relatoria do senador Izalci Lucas (PL-DF). O projeto foi promulgado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), em 25 de junho, tornando sem efeito as alterações no IOF. A celeridade da tramitação reflete a força dos lobbies do agronegócio, do mercado financeiro e de setores industriais, que pressionaram pela manutenção de isenções fiscais.

Impacto: A derrubada dos decretos do IOF restabeleceu as alíquotas anteriores, reguladas pelo Decreto 6.306/2007, e reduziu a arrecadação prevista em R$ 10 bilhões para 2025, segundo o governo, forçando um contingenciamento adicional de R$ 12 bilhões no orçamento.

Isso ameaça programas sociais como Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida e Pé-de-Meia, além de emendas parlamentares, com um corte estimado de R$ 2,7 bilhões em 2025. A suspensão impede uma redistribuição tributária mais progressiva, mantendo a carga fiscal desproporcional sobre os pobres e a classe média, que pagam altos impostos sobre consumo (ICMS, PIS, Cofins), enquanto setores financeiros e do agronegócio preservam benefícios fiscais. A medida foi criticada por deputados como Tarcísio Motta (Psol-RJ), que destacou que o IOF ajustado incidia apenas sobre operações de crédito de pessoas jurídicas, tornando o sistema tributário mais justo.

2. Isenção de Imposto de Renda até R$ 5.000 mensais (PL 1087/2025)

Apresentado em 18 de março de 2025 pelo Poder Executivo, esse projeto cumpre promessa de Lula e prevê isenção total de Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5.000 por mês a partir de 2026, com descontos parciais entre R$ 5.000 e R$ 7.000. Beneficiaria 10 milhões de brasileiros, somando-se aos 20 milhões isentos desde 2023. A renúncia fiscal de R$ 25,84 bilhões seria compensada taxando altas rendas (acima de R$ 50.000 mensais) e dividendos, hoje isentos.

Tramitação: Parado na Comissão Especial da Câmara, sem avanços, enfrenta resistência de parlamentares ligados a bancos e empresas, que temem tributar dividendos.

Impacto: Para um motorista de aplicativo (R$ 3.650), a economia seria R$ 1.058 anuais; para uma professora (R$ 4.867), R$ 2.604. Essa renda extra significaria mais comida, saúde ou educação para os filhos.

3. Limitação do ganho real do salário mínimo (PL 4614/2024)

Parte do pacote de ajuste fiscal do governo, apresentado em 27 de novembro de 2024, esse projeto vincula o reajuste do salário mínimo à inflação e a um ganho real de 0,6% a 2,5%, dentro do arcabouço fiscal.

A proposta busca garantir poder de compra para 50 milhões de brasileiros que dependem do mínimo, mas enfrenta críticas por limitar ganhos reais.

Tramitação: Está na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, sem previsão de votação. A lentidão reflete a pressão de setores que temem aumento de custos trabalhistas, como a indústria e o agronegócio.

Impacto: Um salário mínimo mais robusto elevaria a renda de trabalhadores informais, aposentados e beneficiários de programas sociais, reduzindo a pobreza extrema.

Trabalhador em aterro sanitário. Foto: Divulgação

4. Controle de incentivos tributários (PLP 210/2024)

Apresentado em 2024, esse projeto de lei complementar impõe travas ao crescimento de renúncias fiscais, que em 2024 ultrapassaram R$ 400 bilhões, beneficiando majoritariamente grandes empresas e setores como o agronegócio. A proposta permite usar superávits de fundos públicos para abater a dívida, aliviando o orçamento para investimentos sociais.

Tramitação: Aprovado na Câmara em dezembro de 2024, está no Senado, mas sem relator designado. A resistência vem de lobbies do agronegócio e da indústria, que defendem a manutenção de isenções.

Impacto: Redirecionar esses recursos para saúde, educação e habitação atenderia diretamente às necessidades dos mais pobres, que não se beneficiam das atuais renúncias fiscais.

5. Tributação mínima de multinacionais (PL 3817/2024)

Apresentado em 2024, esse projeto cria um adicional na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para garantir uma tributação mínima de 15% para multinacionais com faturamento acima de €750 milhões. A medida segue um acordo global contra a erosão tributária e poderia gerar bilhões para políticas públicas.

Tramitação: Aprovado na Câmara, está no Senado, mas sem avanços desde o início de 2025. A oposição de setores industriais e financeiros trava a discussão.

Impacto: A arrecadação extra poderia financiar programas como o Bolsa Família, que beneficia 21 milhões de famílias pobres.

A radiografia das bancadas e os lobbies que mandam no Congresso

O Congresso brasileiro é dominado por bancadas que representam interesses específicos, raramente os dos pobres. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), com cerca de 300 deputados e 40 senadores, defende isenções fiscais para o agronegócio, que em 2024 consumiu R$ 80 bilhões em renúncias.

A bancada evangélica, com cerca de 200 parlamentares, prioriza pautas morais, mas muitas vezes alinha-se aos interesses econômicos da FPA. A bancada da Bala, com cerca de 50 membros, defende a indústria de armas, enquanto a bancada empresarial, ligada à Confederação Nacional da Indústria (CNI) e à Febraban, resiste a qualquer tributação sobre lucros e dividendos.

Esses grupos formam uma rede de influência que marginaliza os sem-voz: os 70% da população que vivem com até dois salários mínimos. Parlamentares como Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara, falam em “responsabilidade fiscal”, mas defendem vetos a tributações sobre fundos imobiliários e do agronegócio, beneficiando elites. A liberação de R$ 1,72 bilhão em emendas parlamentares em um único dia, em 24 de junho de 2025, é um exemplo escandaloso de como o Congresso prioriza interesses próprios sobre o bem comum.

A dificuldade de encontrar porta-vozes para os pobres

Quem defende o motorista de aplicativo que trabalha 12 horas por dia? Ou a mãe solo que depende do Bolsa Família? No Congresso, esses brasileiros são invisíveis. A pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) mostra que 70% dos eleitores apoiam taxar mais os ricos e menos os pobres, mas o Parlamento ignora esse clamor.

Um consórcio internacional, incluindo a FGV, investiga desde 2024 como a elite política reproduz a riqueza, e os dados preliminares são claros: parlamentares protegem suas redes de influência, que incluem fazendeiros, banqueiros e industriais.

Os lobbies do agronegócio, bancos e indústria de armas operam com eficiência. A FPA, por exemplo, articulou a aprovação de isenções para agrotóxicos e insumos agrícolas na reforma tributária, enquanto a Febraban pressiona contra a tributação de dividendos.

A bancada da Bíblia, embora focada em pautas conservadoras, muitas vezes apoia medidas que favorecem os ricos, como a manutenção de supersalários no Judiciário. A bancada da Bala, por sua vez, garantiu a exclusão de armas do Imposto Seletivo, beneficiando a indústria armamentista.

A tributação regressiva e a farsa da “justiça fiscal”

O sistema tributário brasileiro é uma máquina de desigualdade. Enquanto os pobres pagam até 30% de sua renda em impostos sobre consumo (ICMS, PIS, Cofins), os ricos, com rendas de dividendos e lucros, enfrentam alíquotas efetivas de apenas 2,54%.

O governo propôs taxar dividendos acima de R$ 50.000 mensais em 10% e elevar o IOF sobre investimentos, mas essas medidas enfrentam resistência feroz. A tentativa de rediscutir supersalários e renúncias fiscais é tratada como tabu, pois afeta diretamente a elite parlamentar e seus aliados.

A narrativa dos parlamentares antipobres é astuta: eles dizem que “o Brasil tributa muito”, mas omitem que quem paga são os pobres e a classe média. A proposta de isenção do IR até R$ 5.000 é chamada de “eleitoreira” por opositores como Samuel Pessôa, que defendem ajustes fiscais que preservem os privilégios dos ricos. Enquanto isso, o Congresso aprova emendas bilionárias e mantém isenções para setores que não precisam delas.

Um Congresso que não escuta o povo

O que me choca, como cidadão, é a desconexão entre o Congresso e a população que o sustenta. A pesquisa do CEM mostra que os brasileiros querem um sistema tributário progressivo, mas o Parlamento age na contramão.

A ofensiva contra o IOF, a lentidão na tramitação de projetos como o PL 1087/2025 e a proteção aos supersalários revelam um Legislativo capturado por lobbies. Os pobres, que pagam impostos indiretos em cada pão que compram, não têm quem os represente.

A pergunta final não é apenas por que o Congresso não gosta de pobres, mas por que continuamos permitindo que ele ignore os sem-voz. A resposta está em nossas mãos: exigir que o Congresso represente o povo, não os lobbies, e pressione pela aprovação de projetos que promovam justiça social. Até lá, os ricos seguirão livres de pagar o que os pobres já arcam, e o Brasil permanecerá refém de uma democracia desigual.

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Last Update: 28/06/2025