Há pelo menos seis anos, o Brasil segue paralisado diante de um dos maiores entraves para o seu desenvolvimento: o analfabetismo funcional. Quase um terço da população entre 15 e 64 anos não consegue interpretar textos mais complexos ou concluir tarefas básicas de escrita e cálculo.
Os dados são da edição mais recente do Indicador de Alfabetismo Funcional, o Inaf. Produzido a partir de entrevistas com 2.554 pessoas em todas as regiões do País, o levantamento mediu o grau de habilidade dos brasileiros em leitura, escrita e matemática, com margem de erro entre dois e três pontos percentuais.
A maior parte da população (36%), aponta o Inaf, está no nível elementar de alfabetismo — capaz de compreender textos de média monta, fazer pequenas inferências e resolver problemas básicos de matemática. Outros 25% alcançam o nível intermediário. Apenas 10% atingem o nível de proficiência, o mais elevado.
“Ter um terço da população nessa condição a condena a um lugar marginal e subalterno”, alerta Roberto Catelli, coordenador da área de educação de jovens e adultos da Ação Educativa, uma das organizações responsáveis pelo estudo.
Embora a escolaridade seja o principal indutor do alfabetismo, os dados mostram lacunas preocupantes: 17% dos que concluíram o ensino médio ainda são analfabetos funcionais, e apenas 24% dos que chegam ao ensino superior atingem a proficiência. Entre os que cursaram ensino superior, 88% são funcionalmente alfabetizados, mas apenas 61% alcançam níveis intermediário ou proficiente — uma queda em relação aos 71% observados em 2018.
Mas esta paralisia, destaca Catelli, não se explica apenas pela escolarização: falta investimento consistente em educação básica, há fortes desigualdades sociais, ausência de políticas para jovens e adultos, e a crença equivocada de que avaliações periódicas, por si só, melhoram a qualidade do ensino. “Estados e municípios precisam assumir seu papel na gestão educacional.”
Em entrevista a CartaCapital, Catelli aprofunda a discussão. Confira os destaques a seguir.
CartaCapital: O que significa para o País ter 30 % de sua população considerada analfabeta funcional?
Roberto Catelli: Primeiro, é importante esclarecer que o analfabeto funcional reconhece letras e números, lê uma palavra ou escreve uma frase, mas enfrenta grandes restrições para participar da vida social — inclusive no mundo digital. Falta‑lhe autonomia para tarefas de leitura e escrita mais complexas. Ter um terço da população nessa condição a condena a um lugar marginal e subalterno; é o espelho da desigualdade brasileira.
CC: É um problema restrito à escola e às políticas educacionais?
RC: Há, sim, uma questão escolar: muitos concluem o Ensino Médio sem alcançar proficiência. Mas os dados mostram que os mais jovens são mais alfabetizados que os mais velhos, prova de que a inclusão escolar das últimas décadas deu resultado. O desafio é fazer esse grupo avançar para níveis proficientes, e isso envolve qualidade da escola e fatores externos — insegurança alimentar, saúde, trabalho.
Também precisamos olhar para os 68 milhões de brasileiros que não concluíram a educação básica (40 % dos adultos). A matrícula na EJA cai há dez anos por falta de investimento, modelos flexíveis e currículos adequados. A escolaridade é o principal indutor do alfabetismo; se esse direito é negado, continuaremos estagnados. Além disso, não dá para falar em qualidade sem abordar carreira docente, remuneração, formação e infraestrutura escolar.
CC: Por que não avançamos na alfabetização?
RC: Avaliações como Inaf, Saeb e ANA mostram há anos resultados inadequados. Divulgar indicadores negativos não basta para induzir melhorias. Bonificar professores cria paliativos, mas não resolve. Falta investimento e autonomia para que cada escola desenvolva processos de aprendizagem significativa. Avaliar é necessário, mas não pode ser o fio condutor da política educacional.
CC: O nível de alfabetismo influencia a relação com ambientes digitais. Por que isso importa?
RC: Quanto maior a escolaridade, maior a capacidade de enfrentar problemas nas plataformas digitais. Entre os analfabetos, 95 % não conseguiram cumprir as tarefas propostas. A exclusão digital é real: a internet não iguala todos, depende do processo de escolarização. Sem isso, não avançaremos em cidadania digital.
CC: A alfabetização é tarefa dos municípios. Como estados e União podem se responsabilizar?
RC: Muitos municípios têm pouca capacidade técnica e financeira. Redes estaduais e o MEC precisam induzir políticas de formação e apoiar as redes locais. Mas a execução cabe aos entes federativos, e a educação vira moeda de troca política. Adotam‑se soluções supostamente baratas — escolas cívico‑militares, EAD na EJA, contratação temporária de docentes — que não garantem qualidade. Estados e municípios precisam assumir seu papel na gestão educacional.
CC: O governo estima alfabetizar 80 % das crianças de 7 a 8 anos até 2030. É possível?
RC: Depende de investimento e da competência para criar programas eficientes, além de atrair estados e municípios para o mesmo desafio. Num país dividido, propostas federais muitas vezes são rechaçadas. Para chegar perto da meta, precisaremos de recursos, massa crítica e acordos políticos que hoje ainda não temos.