O Brasil será confrontado em breve pelo que parece ser um grande dilema: de um lado, a obrigação de não interferir em assuntos internos de outros países. De outro, a de pautar suas relações exteriores pela defesa dos direitos humanos. Ambas as obrigações estão expressas em incisos diferentes, o II e o IV, do mesmo artigo 4º da Constituição. Então, como escapar do que, à primeira vista, pode parecer uma cilada constitucional?
A questão está longe de ser meramente teórica. Ao contrário, apresenta-se de forma concreta e urgente em 10 de janeiro, quando o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, for empossado, em Caracas, para um novo mandato.
De um lado, o Brasil não deve imiscuir-se em assuntos da conturbada política venezuelana. Por isso, muitos brasileiros argumentam que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assim como o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e o assessor da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, não teriam o direito de emitir juízo a respeito do contestado resultado das eleições presidenciais que em 28 de julho passado opuseram Maduro ao candidato concorrente Edmundo González Urrutia.
Para quem pensa assim, não cabe ao Brasil dirimir a contenda interna num país vizinho, no qual, há muitos anos, ocorre uma disputa violenta entre setores ligados a Maduro – e, antes dele, ao presidente Hugo Chávez – e da oposição, integrada inclusive por atores de extrema-direita conectados com movimentos politicamente radicais, aqui mesmo, no Brasil. Os que fazem essa ponderação manifestam um argumento legítimo, baseado no inciso IV do artigo 4º da Constituição brasileira, segundo o qual a “República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais” por uma série de princípios, dentre os quais o da “não intervenção” em assuntos internos de outros países.
É preciso responder com seriedade a esse argumento, esgrimido de forma legítima por muitos apoiadores do presidente Lula e ativistas das esquerdas brasileiras em geral. Há nesse amplo setor gente que simplesmente não quer ver seu governo se prestando a nenhuma campanha infame, baseada em interesses escusos, que termine por desestabilizar um governo latino-americano, como tantas vezes aconteceu na história política da região.
É possível responder a essa inquietação sem sermos ingênuos no que diz respeito ao jogo político mais amplo, disputado por países poderosos que têm interesses na região, sem ignorar as limitações que a Constituição impõe à condução da política externa brasileira. Para dar essa resposta, podemos partir por um aspecto das relações exteriores no qual o Brasil está diretamente envolvido: o cerco que a Venezuela faz há meses à embaixada da Argentina em Caracas. Esse episódio toca em um aspecto da disputa política interna venezuelana que extrapola as considerações meramente domésticas, impondo graves consequências à proteção internacional dos direitos humanos e às normas internacionais que devem reger as relações diplomáticas entre todos os países do mundo.
A embaixada da Argentina em Caracas recebeu, em março de 2024, um grupo de cidadãos venezuelanos que pediram asilo internacional, alegando sofrer perseguição do governo Maduro. Ao fazer isso, os requerentes usaram uma regra consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção de Caracas de 1954. Qualquer vítima de perseguição tem o direito de solicitar asilo e qualquer governo tem o direito de concedê-lo aos perseguidos. A despeito do amplo respaldo que o direito internacional confere tanto a esse grupo de venezuelanos quanto ao pessoal diplomático argentino que os recebeu na embaixada, o governo venezuelano decidiu, ainda assim, cercar o local com a polícia.
Maduro ordenou em seguida a expulsão dos diplomatas argentinos. Diante do vácuo criado, o Brasil assumiu a custódia do local. Mas Maduro redobrou a pressão e, em 7 de setembro de 2024, dia da Independência do Brasil, revogou unilateralmente a custódia brasileira, sob o argumento infundado de que o local acobertaria “atividades terroristas”. Por fim, o governo venezuelano passou a cortar o suprimento de luz e água, assim como a restringir a entrada de alimentos e remédios na embaixada argentina, de acordo com denúncia de organizações internacionais de direitos humanos. Todas essas medidas violam determinações das Convenções de Viena de 1961 e de 1963, que regulam as relações diplomáticas entre os países.
O envolvimento do Brasil na Venezuela não é, portanto, um exercício leviano de interferência em questões internas de um país vizinho. Ele é, antes, como os fatos demonstram, um gesto corajoso em sintonia com a proteção internacional dos direitos humanos, obrigação da qual nosso País não pode livrar-se se quiser manter o papel tradicionalmente proeminente que tem na região e no Sul Global, de maneira mais ampla.
Esses eventos mencionados, por si sós, refutam de maneira incontestável a ideia de que os posicionamentos adotados pelo governo Lula na Venezuela constituiriam uma interferência indevida. Não só. Há ainda uma série de outros aspectos que elevam a situação venezuelana ao patamar de uma crise de dimensões internacionais, sobre as quais o Brasil tem muito a dizer, de maneira legítima e constitucional.
Maduro busca reconhecimento internacional para o mandato que pretende iniciar em 10 de janeiro. Por isso, convida líderes de todos os países para a cerimônia de posse. O Brasil é um desses países convidados e, nessa condição, tem o direito de expor seus argumentos em relação à própria eleição realizada há seis meses, das quais, até agora, não se viram as atas.
O presidente Lula pede há meses a divulgação dessas atas, para que o mundo saiba exatamente qual foi o resultado eleitoral. Diante das reiteradas negativas, eu mesmo, juntamente com um grupo de advogados que fazem parte da IHR Legal, movemos uma ação no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, que, por sua vez, decidiu que o governo Maduro não pode destruir essas atas antes de apresentá-las. Esta é, portanto, mais uma obrigação internacional que respalda e legitima a pressão brasileira.
Por fim, Maduro é alvo de uma investigação aberta em 2019 no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Após as eleições de julho do ano passado, 646 novas denúncias foram juntadas a esse processo. O Brasil é um dos países signatários do Estatuto de Roma, que assentou as bases para o funcionamento do TPI. Esta é, portanto, mais uma razão, dentre as muitas expostas aqui, para respaldar as ações que o governo brasileiro vem tomando em relação à Venezuela, ações essas que devem seguir nesse curso para que o Brasil respeite não apenas os termos de sua própria Constituição, como também as normas do direito internacional aplicáveis a esse contexto.