Após 11 semanas de bloqueio total, o governo israelense do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu cedeu: desde o início da semana, os primeiros caminhões foram autorizados a entrar na Faixa de Gaza para fornecer suprimentos de ajuda à população que sofre. Netanyahu afirmou que isso é importante para garantir o apoio internacional.
De acordo com a autoridade de coordenação israelense Cogat, entre terça-feira passada e a última quinta-feira (22/05) um total de 198 caminhões carregados com suprimentos de ajuda humanitária atravessaram a passagem de Kerem Shalom no triângulo fronteiriço entre Egito, Israel e a Faixa de Gaza.
Na terça e na quarta, 98 caminhões foram inspecionados e, na quinta-feira, outros 100. Os caminhões transportavam ajuda humanitária, incluindo farinha, alimentos para bebês, equipamentos médicos e medicamentos.
Parece bastante movimento, mas na verdade é apenas um gotejar. Durante o cessar-fogo no início do ano, até 600 caminhões transportando ajuda cruzavam a fronteira com a Faixa de Gaza todos os dias para abastecer os cerca de 2 milhões de palestinos.
Até mesmo a retomada das entregas não ajudou muito. As equipes da ONU relatam que os primeiros caminhões do Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês) só chegaram a Gaza na noite de quinta-feira e entregaram farinha a algumas padarias.
A carga ficou presa nos pontos de coleta por um longo tempo devido à falta de autorização de segurança. “Conseguimos distribuir os primeiros suprimentos de ajuda em Gaza. Esse é um pequeno vislumbre de esperança, mas muito pouco em vista da necessidade. Centenas de caminhões seriam necessários todos os dias. Eles estão a postos, parados do outro lado da fronteira”, disse Martin Frick, chefe do Programa Mundial de Alimentos da ONU na Alemanha.
Onde os suprimentos estão se acumulando?
A ajuda humanitária está acumulada atrás das passagens de fronteira. O WFP tem mais de 116 mil toneladas de alimentos no Egito, Jordânia e Israel – o suficiente para alimentar um milhão de pessoas por cerca de quatro meses. De acordo com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA), há também quase 3 mil caminhões totalmente carregados prontos para partir a qualquer momento.
No entanto, pouco está sendo transportado do armazém de suprimentos para o centro de distribuição. Em Kerem Shalom, a única passagem de fronteira aberta no momento, todas as mercadorias precisam ser recarregadas em outros caminhões. Depois, os comboios da ONU têm que esperar em um ponto até que a coordenação militar israelense dê a aval de segurança para a rota planejada.
O comboio permanece parado até que seja dada autorização. Assim, paletes de comida para bebês e farinha estão empilhadas, enquanto as cozinhas que distribuem sopa aos famintos no norte continuam esperando mantimentos.
Quem envia a ajuda?
A UNRWA ainda é a maior responsável pela ajuda. A agência da ONU administra os abrigos de emergência e encheu os 3 mil caminhões bloqueados. O Programa Mundial de Alimentos da ONU compra farinha, organiza comboios e opera 25 padarias na Faixa de Gaza. No entanto, elas tiveram que fechar no final de março devido à falta de combustível.
As primeiras padarias puderam voltar a funcionar em nesta quinta-feira. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) estão contribuindo com alimentos especiais, vacinas e suprimentos cirúrgicos.
Eles estão sendo apoiados pelas Sociedades do Crescente Vermelho do Egito, da Jordânia, do Catar, dos Emirados e da Turquia, pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e por dezenas de ONGs internacionais, como a Islamic Relief.
A ajuda bilateral de países da União Europeia (UE) ou dos EUA acaba no mesmo gargalo, pois Israel envia cada remessa por meio de seu próprio regime de inspeção. Ao mesmo tempo, o governo israelense, juntamente com empresas americanas, está planejando estabelecer vários “centros de distribuição seguros” no sul, onde forças de segurança privadas devem assumir a distribuição. No entanto, a ONU rejeita esse modelo por considerá-lo não neutro.
Por que o material está se acumulando?
Israel justificou o bloqueio total em 2 de março alegando que o Hamas, classificado como uma organização terrorista por muitos países, estava saqueando suprimentos de ajuda. Somente sob pressão internacional maciça é que o país permitiu importações limitadas “até o início do novo sistema de distribuição”.
No entanto, enquanto a ONU e Israel estiverem discutindo sobre responsabilidades, cada palete permanecerá nos centros de armazenamento provisório.

Enquanto destrói a Faixa de Gaza, Israel oferece duas opções aos palestinos: morrer soterrado ou de fome e sede – Imagem: Mohammed Abed/AFP
Em Gaza, bombardeios, saques e estradas destruídas são um entrave para a circulação dos comboios. Sem diesel, a locomoção é difícil. Como resultado, até mesmo as poucas cargas autorizadas estão paradas nos depósitos, enquanto os preços do pão explodiram nesse meio tempo.
Há entregas por via marítima?
O corredor de ajuda marítimo aberto no primeiro semestre de 2024 sob a liderança do Chipre não se transformou em uma rota de abastecimento confiável. Embora a primeira entrega de teste em 17 de março de 2024 tenha levado cerca de 100 toneladas de alimentos a um píer temporário ao norte de Gaza, os operadores interromperam suas viagens após o ataque aéreo israelense a um navio da World Central Kitchen (WCK) no início de abril de 2024.
Ao mesmo tempo, o Exército dos EUA instalou um píer flutuante na costa de Gaza em maio de 2024. Inicialmente, foram planejadas de 90 a 150 cargas de caminhões por dia. De fato, quase 9 mil toneladas de suprimentos de ajuda chegaram à terra em 20 dias de operação. No entanto, danos climáticos, problemas de segurança e saques levaram a repetidas interrupções e, em 17 de julho de 2024, o Pentágono finalmente declarou o fim da missão.

Ajuda humanitária do Programa Mundial de Alimentos da ONU chegou a Gaza na quinta-feira. Foto: Jack Guez/AFP via Getty Images
As iniciativas atuais das ONGs também estão fracassando devido ao bloqueio. Por exemplo, em 2 de maio, o navio Conscience da Freedom Flotilla Coalition foi atingido por a caminho de Gaza, e teve de voltar danificado. Desde então, nenhuma remessa de ajuda civil chegou à Faixa de Gaza por meio marítimo.
Quais as consequências para a população?
Mesmo antes do bloqueio, mais de dois terços da população dependiam de ajuda alimentar externa. A situação se agravou como resultado do congelamento total de 11 semanas. De acordo com uma análise da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 93% da população estava em uma situação de crise ou pior entre 1º de abril e 10 de maio, sendo que 12% estavam passando fome.
Em termos puramente matemáticos, o território palestino precisa de cerca de 1.300 toneladas de alimentos todos os dias para fornecer a 2,2 milhões de pessoas uma média de 2.100 quilocalorias. Um caminhão de ajuda padrão comporta cerca de 25 toneladas. Assim, seriam necessários cerca de 50 a 60 caminhões por dia somente de alimentos.
Como água, combustível, medicamentos e produtos de higiene também precisam ser importados, as organizações da ONU estimam que sejam necessários pelo menos 500 caminhões por dia. Se o fluxo de entrada permanecer em 100 caminhões e a distribuição continuar sem solução, nas próximas semanas a Faixa de Gaza se tornará, oficialmente, uma área de catástrofe humanitária de fome.