Por: Marcos Ruy.
A ferramenta do CNJ busca combater desigualdades de gênero no Judiciário, mas a aplicação ainda enfrenta desafios estruturais após três anos de implementação.
Motivado pelo artigo “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, de Andréia Espíndola, assistente social do Poder Judiciário de Santa Catarina, no site ND Mais, realizamos entrevistas sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e de como está funcionando em três anos de existência. Criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2021, o Protocolo serve como orientação para a observação das questões de gênero nas audiências de julgamento.
A conversa aconteceu por WhatsApp, com as servidoras públicas do Poder Judiciário de Santa Catarina e integrantes do Coletivo Valente, Ângela Daltoé Tregnago e Dymaima Kyzzy Nunes. O Coletivo Valente foi criado em 2017 pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (Sinjusc).
Elas explicam que o coletivo nasceu da necessidade de as mulheres se organizarem de forma autônoma para atuar na formação das mulheres e melhor enfrentar os problemas vivenciados no ambiente do trabalho e debater como acabar com o assédio e as imposições postas às mulheres por serem mulheres. Em 2018, foi lançada, inclusive a revista “Valente”, pelo Sinjusc, escrito somente por mulheres sobre as questões de mulheres.
Para Dymaima, “é no contexto de uma sociedade patriarcal, que frequentemente invisibiliza e silencia as mulheres, e as revitimiza em processos judiciais, que se torna indiscutível a necessidade da criação e implementação de um protocolo com perspectivas de gênero. Ainda mais numa sociedade como a nossa que está entre as mais violentas do mundo contra mulheres e a população LGBT+.”
“O principal objetivo do protocolo é promover uma mudança de paradigma, adotando uma abordagem mais sensível e atenta às vulnerabilidades que atravessam as questões de gênero”, afirma Ângela.
Depois publicaremos entrevista sobre o mesmo tema com a juíza do Trabalho e professora universitária, Valdete Souto Severo, que recentemente publicou o livro “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – reflexões, implementações e desafios”.
Veja a íntegra da entrevista abaixo:
Como surgiu a do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero?

Dymaima: No ano de 2021, um grupo de Trabalho instituído pela Portaria número 27, do Conselho Nacional de Justiça, elaborou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Esse grupo debateu por seis meses, questões de gênero. Aí o protocolo tornou-se de observância obrigatória, através da Resolução 492/2023, do CNJ.
O Protocolo é de uso obrigatório pelos tribunais?
Dymaima: Essa norma serve como uma ferramenta essencial para que magistrados, magistradas e demais operadores do direito – como advogados, estudantes, estagiários, servidores, assistentes sociais, entre outros – possam identificar e enfrentar as assimetrias de gênero presentes nos sistemas de Justiça. Mas não é obrigatório.
Ângela: Resultado de lutas históricas protagonizadas por mulheres e movimentos sociais, o protocolo surge como uma resposta às desigualdades de gênero, classe e raça que há tempos vêm sendo evidenciadas.
Dymaima: É no contexto de uma sociedade patriarcal, que frequentemente invisibiliza e silencia as mulheres, e as revitimiza em processos judiciais, que se torna indiscutível a necessidade da criação e implementação de um protocolo com perspectivas de gênero. Ainda mais numa sociedade como a nossa que está entre as mais violentas do mundo contra mulheres e a população LGBTQIA+.
Ângela: “O principal objetivo do protocolo é promover uma mudança de paradigma, adotando uma abordagem mais sensível e atenta às vulnerabilidades que atravessam as questões de gênero, com suas suscetibilidades.
O Protocolo tem balizado realmente os julgamentos no país?

Ângela: Em regra, há um processo paulatino e ainda tímido de alteração de perspectiva dos magistrados e magistradas e dos demais operadores do direito, quanto à importância do Protocolo e de sua implementação nos julgados; no entanto temos percebido que as instituições, como o Poder Judiciário, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público, através de seus membros, têm cada vez mais se conscientizado sobre as desigualdades de gênero que atravessam os sistemas de justiça.
A exemplo, podemos citar a desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, dra. Alice Birchal, que se utilizou do Protocolo para anular uma sentença de partilha, porque haveria comprovação de que o consentimento da vítima foi viciado pela coação decorrente da violência doméstica da qual ela foi vítima. Também da juíza de Direito, dra. Alessandra Mayra da Silva Oliveira, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que aplicou o Protocolo para determinar que, num crime de tráfico de entorpecentes praticado por um casal “um relacionamento onde o companheiro exerce controle ou influência sobre as decisões domésticas (…), a possibilidade de coação, direta ou indireta deve ser considerada”, sopesando assim a análise das provas, e promovendo uma visão mais humanizada e atenta aos contextos específicos de gênero que poderiam ter induzido o comportamento da acusada.
Dymaima: No âmbito federal, há um banco de dados lançado pelo CNJ através do qual é possível aferir o número e a diversidade de decisões que já se pautaram pelo Protocolo. Os filtros de busca nos permitem acessar, por exemplo, o ramo da justiça, o Tribunal e a área do direito em que o Protocolo foi aplicado, facilitando a pesquisa de quem procura entender como os julgados têm sido proferidos.
Nos três anos de vigência do Protocolo?
Dymaima: Passados três anos desde sua implementação, a aplicação do Protocolo para evitar estigmas de gênero e seus impactos prejudiciais às mulheres nas decisões judiciais ainda não se tornou uma prática comum na justiça brasileira. A mudança é, portanto, gradual, porém, significativa, se considerarmos que a cada situação ou processo em que é aplicado, a justiça se torna a mais efetiva.
Ocorreram muitos casos de violência de gênero, noticiados pela mídia, continuam acontecendo?
Dymaima: O Protocolo com Perspectiva para Julgamento de Gênero é uma novidade legislativa, decorrente de uma recomendação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujas diretrizes somente se tornaram obrigatórias em 2023, com a Resolução CNJ n. 492/2023. Trata-se, então, de uma norma recente, que busca corrigir as disparidades e promover um tratamento mais igualitário entre os gêneros dentro dos sistemas de justiça. A expectativa é a de que, através desse importante instrumento, haja uma mudança na interpretação de situações concretas levadas à análise do Poder Judiciário. De fato, houve um aumento significativo nos números de violência doméstica e familiar contra mulheres, principalmente durante a Pandemia da Covid-19.
De que tipo?
Ângela: Fatores como a coexistência forçada, o estresse econômico e temores sobre o coronavírus podem ser elementos importantes para explicar o aumento de números nesse período, mas sem dúvida, o patriarcalismo, que é um sistema que legitima a dominação dos homens sobre as mulheres, é a ideologia sobre a qual qualquer tipo de violência de gênero se escora. Então, mesmo com o advento do Protocolo, somente ele não será o suficiente para uma mudança substancial na sociedade.
Como resolver então?
Dymaima: Através de palestras, seminários, reuniões, grupos de estudo, aulas, informativos, e tantos outros meios possíveis de difundir e convocar uma