A posse de hoje é mais do que uma mudança na presidência dos Estados Unidos. É mais, até, do que a entronização de um extremista de direita à frente do país (ainda) mais poderoso do mundo.
Ela é o momento em que podemos decretar a falência da democracia liberal.
Em 2016, as eleições levaram ao poder um sujeito francamente despreparado, carente dos mínimos requisitos cognitivos ou morais para o exercício do cargo. Seu triunfo foi ancorado na degradação total do debate público, já antes deplorado por sua superficialidade e imediatismo.
Qualquer tentativa de discussão relevante era soterrada no confronto com o candidato republicano, cujo estilo era baseado em gabolices, mentiras deslavadas e ofensas dirigidas aos adversários. Como escreveu Giuliano da Empoli, “fazer campanha contra Trump significa ser arremessado num pátio de escola”.
Ainda assim, ele foi capaz de conquistar a indicação do Partido Republicano, derrotando lideranças consolidadas, como o governador Jeb Bush e o senador Ted Cruz, e outsiders de melhor pedigree, como a ex-presidente da corporação Hewlett-Packard, Carly Fiorina; de reunir em torno de si todo o seu partido; de ganhar as eleições; e de cumprir os quatro anos de mandato, a despeito das muitas evidências de incompetência, irresponsabilidade e ilegalidade.
Em grande medida, o sistema político da democracia “mais consolidada” do mundo curvou-se a Donald Trump e a seus métodos.
O que se esperava dele no exercício do cargo se cumpriu: incompetente, autoritário, rapace, delirante, ególatra.
Em suma, o eleitorado dos Estados Unidos conheceu a presidência de Trump. Mas agora, quatro anos depois de tê-lo afastado, julgou que era uma boa ideia lhe dar um novo mandato. Uma vitória por larga margem, desta vez também nos votos populares, reconduziu-o à presidência, sem que ele tivesse mudado de discurso ou de métodos – pelo contrário, parece ter reforçado suas apostas.
Trump reassume com poderes ainda maiores, desfrutando de uma folgada maioria na Câmara dos Representantes, no Senado e também na Suprema Corte (sem contar o apoio das grandes empresas de tecnologia). Seu projeto, anunciado aos quatro ventos, é destruir qualquer mecanismo de controle para o exercício do poder.
Às vésperas de assumir o cargo, lançou bravatas, como iniciar guerras de conquista contra o Canadá, o Panamá e a Groenlândia. São só bravatas – mas quem sabe?
Foi definitivamente enterrada a ilusão, alimentada por alguns após o pleito de 2020, de que a democracia liberal poderia voltar à sua morna normalidade.
Há um discurso à esquerda que nos diz que a democracia nunca existiu, portanto não estamos perdendo nada.
Sim, a democracia limitada, que vigorou em boa parte do mundo a partir de meados do século passado, nunca realizou – nem de perto – o ideal de “governo do povo”. Nem por isso era irrelevante.
Ela nasceu da luta dos dominados para que suas vozes fossem ouvidas no processo de tomada de decisões. Para funcionar, mesmo que dentro de suas limitações, ela tinha que garantir uma coisa: que o poder público tivesse condições de impor freios ao império do capital.
Ou, dito de outra forma, que a gente conseguisse impedir que os ricos mandassem em tudo.
A democracia operava com a aposta de que um eleitorado pouco informado e com pouca chance de participação política seria, ainda assim, capaz de tomar decisões minimamente razoáveis. E repousava numa correlação de forças em que os dominados, sem deixarem de sê-lo, tinham maior capacidade de resistência.
Tudo isso foi destruído nas últimas décadas. O esforço de aniquilamento do movimento sindical, a investida ideológica para desfazer a solidariedade de classe dos trabalhadores, a construção de um novo ambiente de informação que reduz a capacidade de aprendermos com nossas próprias experiências – neste admirável mundo novo, as condições de funcionamento da democracia foram severamente fragilizadas.
Se uma parte da esquerda nega a importância das conquistas democráticas, mesmo dentro de suas limitações, outra julga que pode salvá-la promovendo acomodações com a situação atual.
Está muito errada. Hoje, como ontem, a luta pela democracia é a luta para domar – e, quem sabe, um dia superar – o capitalismo.
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