Sigmund Freud era craque em trazer conceitos de outras ciências para o campo da psicanálise. Fazia isso com rigor, mesmo quando se apropriava de palavras ligadas a outros paradigmas. A mais conhecida, entre tantas outras, é sua investigação psicanalítica sobre o Complexo de Édipo.
Acho que não preciso apresentar o lendário rei grego aos leitores de CartaCapital, mas vale resumir o tal “complexo”: trata-se da fantasia infantil de matar o pai para “casar-se” com a mãe. Se hoje, na clínica, encontramos poucos analisandos edipianos, isto não garante que o Complexo de Édipo esteja obsoleto, mas que foi de tal modo incorporado à cultura que os pacientes se referem a ele com ironia, não com espanto.
Além disso, a cultura ocidental tornou-se – talvez graças à psicanálise – muito mais permissiva em relação às manifestações simbólicas de nossos desejos. Manifestamos uma série de vontades que fariam corar um vitoriano. Fazemos piadas de nossas taras, que já não precisam ser tão secretas assim.
A linguagem nos oferece a capacidade de sublimar, isto é, de expressar nossos desejos proibidos ou imorais em palavras, e não em passagens ao ato. Aliás, ao expressar em palavras, tornamos desnecessárias as passagens ao ato. Posso desejar matar fulano, que me traiu ou difamou. Mas não o mato: minha vingança é espalhar aos quatro ventos por que o odeio.
Essa capacidade humana de abrir mão de prazeres físicos, proibidos ou inalcançáveis, em troca de outros prazeres que não sejam nem impossíveis nem criminosos, foi chamada de sublimação por Freud. Seu foco inicial eram as pulsões, de vida e de morte, que se manifestam entre o orgânico e o psíquico. Elas exigem satisfação – em geral, física.
Aproveito para esclarecer: muita gente pensa que a pulsão de morte impele o sujeito ao suicídio ou ao assassinato. A rigor, não se trata disso: as pulsões de vida, que tendem à busca do prazer, podem nos tornar muito mais violentos diante de frustrações do que as de morte. Estas não se satisfazem impelindo o sujeito a matar alguém, e sim a partir da “lei do mínimo esforço”. Daí que atuam mais nas depressões, ou nas grandes letargias, do que nas manifestações de fúria.
Volto ao ponto de partida: para resumir o conceito de sublimação, recorro à ótima síntese encontrada na Enciclopédia Larousse – como já confessei em outra coluna, ainda conservo os volumes dessa obra em papel. Na Física, sublimação refere-se à capacidade de um objeto sólido transformar-se diretamente em gás, sem passar pelo estado líquido. Não por acaso, a psicanálise apropriou-se do conceito: a capacidade humana de transitar dos prazeres desejados para os prazeres possíveis é condição essencial para a vida em sociedade. No entanto, para que essa sublimação seja exitosa, ela exige do sujeito algumas renúncias – a começar por uma importante habilidade de substituir os prazeres proibidos, ou inatingíveis, por outros mais acessíveis e menos ameaçadores ao laço social.
Tais renúncias necessárias ao convívio humano – é para isso que os pais educam seus filhos – ajudam o sujeito, desde criança, a participar do laço social. No caso de pessoas talentosas, permitem que elas encontrem prazeres inigualáveis escrevendo poemas, compondo músicas, atuando em peças teatrais, filmando obras de ficção, fotografando as maravilhas do mundo etc., etc. A lista de possibilidades é imensa.
A propósito, esqueci de incluir aquela que, para mim, mais auxilia nos dias de baixo-astral: cantar! O adágio popular “quem canta seus males espanta” funciona muito bem para esta que vos escreve. E me faz pensar que, se todos os prazeres ansiados e imaginados nos fossem franqueados sem qualquer custo, a dimensão criativa e cultural da vida humana seria profundamente empobrecida.
Gosto de pensar que os bisões representados na caverna de Lascaux, no sudoeste da França, foram talhados na pedra – por volta de 17 mil anos antes de Cristo – para expressar a vontade do homem de dominar aqueles bichos perigosos no período Paleolítico. Ou talvez a vontade de os matar para comer sua carne. Esta, por sinal, não é uma falta que eu precise sublimar: sou vegetariana. •
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ponto de sublimação’