O sistema financeiro exerce influência sobre os bancos centrais no mundo todo, em função de seu poderio econômico. Mas, no caso do Brasil, essa influência é ainda mais grave porque os bancos ganham muito dinheiro com as decisões do Banco Central do Brasil (BCB). Como é conhecido, cada 1 ponto percentual a mais na taxa básica de juros, a Selic, significa um gasto anual com juros, por parte do Tesouro Nacional, de cerca de R$ 55 bilhões. Para acabar com qualquer fantasia sobre a desejada independência do Banco Central em relação ao sistema financeiro privado, se mantida a atual estrutura do sistema, o atual presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, vem defendendo a PEC. Este projeto pretende, através de reforma constitucional, transformar o Banco Central em uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito privado, que terá autonomia orçamentária e financeira. O economista, nomeado pelo presidente Lula, como uma esperança de redução dos juros da economia, não só seguiu em frente com a política de juros extorsivos, como vem elogiando a mencionada PEC.

Um dos aspectos fundamentais nesse debate trazido pela PEC 65/2023, que atualmente tramita no Congresso Nacional, é a questão da Meta de Inflação. Durante 14 anos, desde 2005, a meta de inflação no Brasil estava fixada em 4,5%, com banda para cima e para baixo, de 1,5%. Em 2017, o Conselho Monetário Nacional (CMN) iniciou um processo de redução gradual da meta. Ela foi diminuída para 4,25%, para vigorar a partir de 2019 e para 4% a partir de 2020. Um dos argumentos em defesa da meta era o “alinhamento com as expectativas de mercado”, ou seja, a nova meta definida estaria em sintonia com as projeções do mercado financeiro, conforme indicavam os relatórios do Banco Central à época. Eram também argumentos, o estímulo que significaria uma inflação mais baixa, para o crescimento econômico e para o equilíbrio fiscal da economia. Em junho de 2023, o CMN reduziu a meta de 3% para 2025 e passou a praticar um regime de meta contínua a partir deste ano. Ou seja, a partir de 2025, a meta de inflação passa a ser considerada em um horizonte móvel, e não mais necessariamente restrita a um ano-calendário específico, medida que visa dar maior flexibilidade à política.

A meta definida para o país para este ano é de 3%, com uma margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Ou seja, a inflação pode variar entre 1,5% e 4,5% sem que a meta seja considerada descumprida. No entanto, o problema principal da meta atual, é que ela está fora da realidade econômica brasileira. Historicamente, a inflação no Brasil tem se mantido em patamares bastante mais elevados. A média do INPC-IBGE, para o período 2000 a 2024, 25 anos, foi de 5,60%, quase o dobro da meta atual. A consequência disso é que levar a meta inflacionária para 3% requer políticas monetárias bastante restritivas (com juros muito altos), o que compromete o nível de crescimento econômico, gerando prejuízos em cadeia no emprego e na arrecadação pública.

Com a meta muito baixa, criou-se no país uma aversão pelo crescimento em função da inflação que possa advir do aquecimento da economia. Uma meta mais alta, entre 4% e 4,5%, seria muito mais realista, permitindo uma política monetária menos restritiva, permitindo viabilizar o crescimento. Ou seja, uma meta mais elevada facilitaria manter a taxa de juros em patamares mais baixos, estimulando investimentos e consumo. Mudar a meta de inflação, tecnicamente, é possível para o governo, porque hoje o CMN é composto por três membros: Ministro da Fazenda (que atua como presidente do Conselho); Ministra do Planejamento e Orçamento; Presidente do Banco Central. Mas o governo não tem utilizado essa maioria no CMN. Na prática, quem dá as cartas é o presidente do Banco Central, o que acaba levando a uma distorção, que é a do BCB estabelecer as metas para ele mesmo cumprir.

O BCB, que a PEC 65/2023 pretende tornar uma empresa, não é responsável apenas por definir a taxa de juros e controlar a inflação. Ele possui várias outras atribuições: tem o monopólio da emissão de papel-moeda e moeda metálica no Brasil; regula a quantidade de moeda em circulação; supervisiona o funcionamento do sistema financeiro; administra as reservas cambiais e atua no mercado de câmbio para manter a estabilidade da moeda nacional; controla o volume de crédito na economia e controla as contas do Tesouro Nacional.

Uma das características centrais do chamado Sistema da Dívida Pública, existente no Brasil, é a falta de transparência. Não há clareza sobre a origem e a destinação dos recursos captados através dos títulos emitidos. Por exemplo, como denuncia há anos a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos, o que se constitui em um dos mecanismos que gera dívida pública. As chamadas sobras de caixa são aqueles recursos em dinheiro no caixa dos bancos, que não estão sendo usados naquele momento para empréstimos ou outros investimentos, nem são obrigatórios para reservas exigidas. Depósitos que os bancos recebem da clientela, como dinheiro em conta-corrente, investimentos etc.

Historicamente, o Banco Central utilizava as “operações compromissadas” para controlar essa liquidez. Nesse tipo de operação, o Banco Central do Brasil vende títulos públicos aos bancos, com acordo de recomprar mais tarde, pagando juros. Esse sistema acaba aumentando a dívida pública, claro, já que usa títulos do Tesouro. A partir da Lei 14.185/2021, o BCB foi autorizado a receber depósitos voluntários dos bancos, remunerando-os com uma taxa de juros, normalmente alinhada à taxa Selic. Diferente das operações compromissadas, esses depósitos não são contabilizados diretamente na dívida pública. A ACD identifica a remuneração das sobras de caixa como “Bolsa banqueiro”, na medida em que o sistema garante lucro fácil aos bancos, sobre um dinheiro que está parado na instituição. Algumas estimativas apontam que essa política custou cerca de R$ 1 trilhão aos cofres públicos nos últimos 10 anos.

Quando há sobra de caixa, o BCB absorve essa liquidez, principalmente por meio de operações compromissadas (vende títulos públicos para bancos, prometendo recomprar em prazo curto, remunerando-os à taxa Selic), e depósitos remunerados, através dos quais os bancos depositam parte de seus fundos no Banco Central e recebem juros sobre eles. O pagamento desses juros é bancado pelos cofres públicos, pois o Banco Central utiliza títulos públicos comprados com dinheiro do Tesouro Nacional e depois paga os bancos pelos depósitos ou operações compromissadas. Como a taxa de juros é muito alta no Brasil, mais vale para os bancos deixarem dinheiro parado no Banco Central, do que emprestar para produção e consumo.

A remuneração das reservas bancárias geral déficit para o BCB, que é coberto pelo Banco Central. Muitas vezes, para pagar os juros das operações compromissadas, o governo emite mais título, elevando o estoque da dívida (o que é inclusive ilegal). Há também uma diminuição dos recursos disponíveis para investimentos públicos ou políticas sociais, de uma forma geral. Como ocorre com as questões ligadas à dívida pública, não há discussão sobre esses gastos com a remuneração das sobras de caixa, porém eles servem para justificar cortes de gastos com despesas sociais fundamentais.

Por exemplo, já está de vento em popa a articulação do Capital para realizar nova contrarreforma da Previdência Social. Os “especialistas” já saíram a campo para defender a urgência da nova reforma, e consideram outra rodada de retirada de direitos, inevitável. Fecomercio SP e Fenaprevi (Federação Nacional de Previdência Privada e Vida) já desenvolvem estudos e propostas técnicas para futuras contrarreformas, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) já se manifestou defendendo a mudança como fundamental para o crescimento econômico do país. Falam em “déficit previdenciário” crescente, distorcendo, inclusive, as informações sobre essas questões. Parece que a estratégia é acumular uma massa crítica sobre o assunto, e implementar a “reforma” em 2027, com um governo de direita, ou um governo de esquerda sem nenhuma força perante o capital. Mas não se fala nos gastos com a dívida pública, já que estes são sacrossantos e intocáveis.

O fato é o pagamento de juros sobre as reservas, no caso do Brasil em taxas muito elevadas, acaba funcionando como um “subsídio” indireto aos bancos (bolsa banqueiro), permitindo lucros garantidos sem risco de empréstimo ou investimento. O Banco Central, ao pagar juros sobre reservas, além de favorecer os bancos com dinheiro público, diminui os valores que poderiam ser repassados ao Tesouro como senhoriagem, isto é, o lucro decorrente da emissão de moeda pública. Aliás, a PEC 65/2023, que tramita no Congresso Nacional, prevê o não repasse pelo BCB dos lucros da senhoriagem, ao Tesouro Nacional.

O Brasil não é o único país do mundo que adota o sistema de remuneração das sobras de caixa. Nos EUA, por exemplo, o IOER (Interest on Excess Reserves), ou Juros sobre Reservas Excedentes, foi adotado a partir de outubro de 2008, na brutal crise financeira que impactou o mundo todo. Pelo sistema, o Fed (banco central dos Estados Unidos), paga uma taxa de juros aos bancos comerciais sobre os fundos que estes mantêm no Banco Central, acima do mínimo exigido como reserva. O objetivo da medida é controlar a taxa de juros de curto prazo e gerenciar a liquidez no sistema financeiro.

Ao pagar juros sobre o dinheiro extra depositado pelos bancos, o Fed cria um “piso” para a taxa dos fundos federais, na medida em que os bancos não teriam motivo para emprestar dinheiro a outros bancos por taxas menores do que a oferecida pelo próprio Fed. Com a crise de 2008, os volumes de reservas bancárias cresceram muito, tornando a política ainda mais relevante. Mas as críticas dos economistas independentes ao sistema nos EUA são duras: desincentivo à concessão de crédito pelos bancos, “subsídio” ao sistema bancário, risco de inflação, custos aos contribuintes etc. No Brasil, os poucos especialistas que criticam o sistema, apontando-o como lesivo à população, são olimpicamente ignorados pela grande mídia.

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Last Update: 17/06/2025