Política de data centers tem que impor nossa soberania

por José Dirceu

Precisamos de uma política de implantação de data centers no país, mas ela tem que considerar fatores como impacto na cadeia produtiva, geração de empregos e proteção da nossa soberania. Sem esquecer de inteligência artificial, talvez faça mais sentido focar o planejamento em infraestrutura digital dedicada às reais necessidades de nossa sociedade e da nossa economia.

Notícias recentes dão conta de que o governo Lula está finalizando uma política nacional para atração e modernização de data centers no país. A cargo do Ministério da Fazenda e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a proposta dialoga com a Nova Indústria Brasil (NIB) e com o plano de transformação ecológica. Em missão aos Estados Unidos na semana passada, o ministro Fernando Haddad encontrou dirigentes de algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo para apresentar as ideias gerais e abrir o diálogo para viabilizar investimentos.

Segundo a imprensa, os ministérios propuseram ao presidente Lula um regime especial de tributação – batizado de Redata – que será submetido ao Congresso Nacional nos próximos dias. Ao longo de cinco anos, o programa zerará a alíquota de diversos tributos com foco na importação de componentes estratégicos. As contrapartidas incluem a contribuição ao fundo de inovação tecnológica, destinação de um percentual de capacidade computacional a ser negociada dentro do país e atendimento a critérios de sustentabilidade.

Os centros de armazenamento e processamento de dados são o coração de todos os ecossistemas digitais do planeta, sendo grandes consumidores de recursos escassos, como energia e água. Atualmente, quase metade destes serviços é contratada fora do Brasil enquanto o restante está basicamente sob o controle de cinco empresas estrangeiras. Hoje, 40% das aplicações e recursos digitais em uso no país rodam em data centers no exterior. Ao mesmo tempo, metade dos 12 mil centros espalhados pelo mundo está sediada nos EUA e apenas 5% na América Latina, sendo menos de 1% no Brasil.

Esta localização dos data centers no berço das big techs é o principal motor do superávit da balança de serviços estadunidense. Em 2024, as exportações de computação em nuvem do país atingiram US$ 184 bilhões, superando exportações de petróleo bruto e refinado. Pelo motivo oposto, a concentração geográfica dos serviços de nuvem é a responsável pelo déficit comercial da maior parte dos países. Só no Brasil, estes valores chegaram a US$ 13,3 bilhões em 2024. Outro déficit estrutural advém dos chips e outros equipamentos de informática, que responderam por 49% da nossa pauta de importações, tendo chegado a quase US$ 8 bilhões somente de janeiro a setembro do ano passado.

Nosso governo sustenta que a implantação de data centers impactará o adensamento da cadeia de produtos e serviços digitais avançados, uma das prioridades da missão de Transformação Digital da NIB. Para os técnicos dos ministérios, o Brasil é um destino prioritário destas empresas no momento de expansão de seus negócios impulsionados pelo advento da inteligência artificial. Como explica o ministro Haddad, os fatores de atração seriam a nossa matriz energética limpa e de custo reduzido, além da oferta abundante de recursos hídricos.

O que parece ser uma agenda positiva para o país, porém, carece de mais debate para que questões ligadas à soberania nacional, desenvolvimento tecnológico, impacto em nosso sistema energético e geração de emprego e renda sejam incluídas como variáveis relevantes. A certeza de atração dos investimentos estrangeiros também precisa ser relativizada porque não há garantia de que a relação entre os déficits da balança de serviços e de mercadorias será equacionada pelo Redata.

Fator Trump

Medidas de cunho protecionista anunciadas por Donald Trump nos últimos meses também começam a refrear os prometidos investimentos bilionários ou podem criar privilégios para as big techs que apoiam sua administração. Discursos do presidente indicam que data centers de ponta permanecerão nos Estados Unidos e que as plataformas e serviços mais avançados passaram a ser encaradas como ativos que demandam supervisão do governo norte-americano. O mesmo vale para os principais insumos. Apesar de ter afrouxado as regras de difusão de componentes e modelos de IA a pedido das big techs, a administração Trump apertou ainda mais o veto aos chips chineses da Huawei, repetindo o que tentou fazer no primeiro mandato com o 5G, e vai barrar parcerias que visem aliança com empresas chinesas, medida que compromete os interesses do Brasil manifestados na recente visita do presidente Lula àquele país.

Essas indefinições já fizeram as principais empresas pisarem no freio dos investimentos fora do seu país de origem. É o caso de Microsoft e Amazon que, junto com Google, controlam quase 70% do mercado global de nuvem. Ambas estão revendo suas estratégias de expansão, enquanto esperam decisões do novo governo. Na mesma linha de cautela, a agência de risco Moody’s publicou um relatório alertando para o risco de uma bolha especulativa de data centers de IA causada pelo excesso de investimentos, risco de obsolescência e pressão por energia.

Em paralelo, Trump viajou para a Arábia Saudita levando de carona as principais empresas de nuvem e IA, que já anunciaram investimentos bilionários em estruturas a serem instaladas no Golfo Pérsico e nos EUA, a partir da injeção de recursos dos trilionários fundos árabes na própria região ou em solo estadunidense.

Parece claro, para um atento observador, que Trump escolheu claramente seu parceiro preferencial em termos de desenvolvimento dos recursos estratégicos de IA, aqueles que demandam maior capacidade de processamento. O que não desenvolver no próprio território será terceirizado para as plantas a serem construídas no Golfo.

Cautela necessária

Como se não bastassem estas evidências no campo geoeconômico, nossos formuladores precisam estar atentos a outros elementos que justificam ir mais devagar com o andor. Entre eles está o fato de que o grosso do investimento das big techs no Brasil, caso ocorra, irá para a importação dos componentes, que formam mais de 60% do Capex destas infraestruturas e serão desonerados. Pela ótica dos empregos, os data centers são conhecidos por gerarem muitas vagas durante sua construção e um número ínfimo de profissionais, entre 10 e 15, contratados para operá-los.

Logo, os bilhões anunciados como canto da sereia para algumas lideranças podem não se materializar ou apenas reforçarem a oligopolização deste mercado, com o Brasil entrando como fornecedor de recursos e de dados, abrindo mão de receita e reforçando uma relação colonial histórica que nos persegue. Mais do que isso, nossa soberania digital e segurança nacional estarão sob risco pelo aumento do controle de dados por empresas estrangeiras e pela falta de autonomia para desenvolver nacionalmente nossas soluções de IA.

Considerando que esse mercado é extremamente concentrado, restam dúvidas também se estas contrapartidas mínimas estimularão outros elos da cadeia de valor, uma vez que nossas empresas tendem a ser de médio e pequeno portes, possuindo menor poder de negociação. E como se não bastasse a alíquota zerada de impostos federais, executivos da Amazon declararam que caso queiram garantir os investimentos em seus estados, os governadores também deveriam fazer a sua parte acabando com tributos como o ICMS.

O que parece claro até aqui é que o Brasil não pode prescindir de data centers para implementar seu projeto de desenvolvimento em tempos de economia digital. E temos o que oferecer. Mas parte dessa condição especial não veio do nada. É fruto de décadas de políticas públicas, arcadas pelo contribuinte, como a matriz energética mais limpa do G20 e o protagonismo em biocombustíveis. O discurso, muitas vezes patrocinado pelas próprias big techs, de que o Brasil precisa urgentemente de uma política de atração de investimentos para data centers, acaba por suprimir nuances deste debate: o Brasil possui poder de barganha diferenciado e a atração de investimentos sem planejamento pode ser prejudicial.

A questão é como uma política poderia abarcar diferentes demandas que vão além da necessária redução do custo destes serviços digitais. Parece óbvio, só para citar um exemplo, que um planejamento mais abrangente e focado em data centers de menor porte em regiões mais distantes teria efeito positivo sobre toda a cadeia produtiva e os empregos, garantindo ganhos reais e compartilhados com as empresas brasileiras e os trabalhadores. O debate que se seguirá no Parlamento, portanto, precisa levar em conta estes fatores para que não criemos uma política que aumente nossa dependência externa, mesmo se tratando de tecnologias já dominadas por atores nacionais, e comprometa nossa soberania.

José Dirceu – político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Foi ministro da Casa Civil no primeiro governo Lula, em 2003.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 21/05/2025