O sistema penal brasileiro não está estruturado para enfrentar o crime de alto impacto financeiro e estrutural. Está, sim, voltado para perseguir a pobreza. “A polícia não combate o crime organizado. A polícia combate pobre, só pobre”.
A avaliação é do juiz Luís Carlos Valois, doutor em direito penal e criminologia pela USP, que desmonta, em entrevista à TV GGN, o senso comum sobre o funcionamento da Justiça criminal no Brasil.
Segundo ele, a sociedade e a imprensa insistem em associar o crime organizado à imagem do jovem preso com algumas porções de droga. “E o crime organizado nos helicópteros com meia tonelada de cocaína? Ou nos jatinhos?”, questiona.
Basta seguir o dinheiro, mas ninguém segue
O problema, para Valois, é que a estrutura estatal se recusa a ir onde realmente importa. “Basta seguir o dinheiro, mas ninguém segue. Esse crime organizado verdadeiro, que devia estar sendo combatido, não é. Ninguém segue o dinheiro”.
“A estrutura da polícia, por exemplo, pega um traficante médio, aquele que comanda o bairro, que tem uma casa melhor. É só seguir o dinheiro dele: onde compra cocaína, de onde vem, para onde vai, qual empresário está por trás. Porque tem muito traficante que nem chega perto da droga. Mas a estrutura da polícia não foi feita para investigar e combater esse tipo de tráfico. É como prender o garçom para combater o consumo de álcool”.
Enquanto isso, a engrenagem do tráfico, com plantio internacional, transporte fluvial e portuário, insumos fornecidos por grandes empresas e capital levantado junto a doleiros, continua operando intacta.
Um juiz criminal numa vara cível
Autor do livro “O Direito Penal da Guerra às Drogas” e conhecido por ter atuado para conter o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, palco de uma carnificina que deixou 56 mortos em 2017, o juiz Luís Carlos Valois passou anos na área criminal. Recentemente, migrou para a área cível, e foi aí que se deparou com este outro universo mais sofisticado e menos visível, mas igualmente criminoso.
“Nunca vi tanto desvio, tanto roubo quanto tenho visto no cível. Banco, estelionato, empresa que não entrega imóvel, empréstimo fraudulento contra idoso… e isso não é chamado de crime”.
Com um ano de atuação no juízo cível, ele relata práticas desenhadas para dificultar qualquer responsabilização judicial, nas quais construtoras abrem CNPJs específicos para cada empreendimento, esvaziam o capital e desaparecem, deixando o prejuízo nas mãos dos compradores.
“É difícil achar o dinheiro. E o mais grave, se você perguntar para um traficante o que é CNPJ, ele nem sabe. A maioria é analfabeta”.
O que mais tem assustado Valois são os casos envolvendo aposentados e pensionistas, vítimas de empréstimos indevidos que drenam seus benefícios, muitas vezes sem que saibam exatamente o porquê.
“Idoso que não sabe nem o que está sendo descontado do benefício. É golpe de empréstimo. E quem faz isso é banco”. Segundo ele, a engrenagem funciona graças à baixa transparência, pouca fiscalização e uma lógica de impunidade alimentada pelo sistema financeiro.
“Saí da área penal, mas continuo lidando com o crime todos os dias. Estou me assustando com o tanto que tem de crime que não é chamado de crime”.
Assista à entrevista completa abaixo:
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