“…uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”
Antônio Cândido
O cinema nacional continua surpreendendo: quem ainda não viu Baby deve assistir.
O filme consegue transformar temáticas das mais densas em poesia. A atuação dos protagonistas é extraordinária, mas a dos atores e atrizes coadjuvantes não fica atrás — pelo contrário.
A direção de fotografia é magnífica, captando poesia até nos trilhos da CPTM e na Praça da República. A direção, como seria de se esperar, é excepcional.
Viver é um desafio, como o filme bem demonstra. Em uma grande cidade, na periferia, sendo gay, é quase um milagre.
Por isso, quando vemos uma mulher trans, como a deputada federal Érika Hilton, desmascarar as mentiras de um aprendiz de fascista como Nikolas Ferreira nas redes sociais, não surpreende que sua postagem tenha alcançado mais de 30 milhões de visualizações.
Na sequência, a extrema-direita a ameaça de morte, revelando, assim, seu verdadeiro conceito de liberdade de expressão: mentiras e violência como sinônimos.
Se o cinema vai bem, a literatura nacional não fica para trás.
Felizes por enquanto – escritos sobre outros mundos possíveis, de Geni Núñez (Editora Planeta), é um livro libertário, como só alguém vindo de outra cosmovisão, como a indígena, poderia escrever.
Nesse caso, a liberdade é completa — abrange tanto o coletivo quanto o individual.
A própria autora tem consciência disso e deixa claro:
“…pois nós somos o sonho de nossos ancestrais, e eles sonharam e confiaram que nós conseguiríamos atravessar e dançar.”
Ela aborda o tema da culpa, uma poderosa forma de medo que nos é incutida para nos paralisar na busca pela realização e pela felicidade.
Sem o temor gerado pela culpa, sociedades tão injustas sequer existiriam.
Explorando esse sentimento que, a longo prazo, leva à depressão, a autora poetiza:
“Que não temos por que tomar como algo nosso o que é do outro
Podemos experimentar pouco a pouco, tirar das costas a
sobrecarga que a antecipação nos traz e lidar com o
que se tem agora
Para não ter tanta culpa, é preciso não ter tanto mérito.”
De fato, ao jogarmos o jogo do poder, que pressupõe que as consequências de nossos atos englobariam até o livre-arbítrio alheio, estamos, na verdade, tecendo uma armadilha tão ilusória quanto a chamada “meritocracia”.
Núñez complementa:
“Pois sei que, no prender e cercear sua vida, eu também me torno alvo da mesma prisão
Seguirei com meus cuidados e limites, mas, dentre
todos os possíveis, saiba que estou fazendo meu
possível para que o moralismo não seja mais a
minha bússola
E o que quero?
Que nosso encontro seja uma companhia para as
aventuras, mesmo e sobretudo aquelas que não
acontecem como imaginamos
A bem-aventurança também pode ser aqui.”
Saltando para a Bélgica, o escritor Octave Pirmez observa:
“Pensar que nós mesmos somos um amontoado indecifrável de virtudes e de vícios, tão estreitamente ligados uns aos outros por uma lei secreta, que as virtudes tendem a degenerar em vícios e os vícios a se transformar em virtudes.”
Em Recordações de família (Editora Nova Fronteira), sua sobrinha Marguerite Yourcenar, a primeira mulher admitida na Academia Francesa, complementa esse pensamento, numa perspectiva latina e quase americana, nos moldes do médico Ernesto Guevara:
“Essa capacidade de sofrer por outrem e de incluir nessa categoria do próximo não somente o homem, mas a imensa maioria dos seres vivos, é bastante rara e deve ser anotada com respeito.”
O cuidado com a criação, preconizado por São Francisco de Assis e instado por Papa Francisco, também se insere aí.
De volta ao Brasil e à natureza, Ailton Krenak, em Um rio, um pássaro (Editora Dantes), exalta ao mesmo tempo a ancestralidade e a interpretação dos sonhos, uma das fontes da moderna psicanálise:
“Foi o sonho da tradição que me deu o caminho a seguir. Deu-me vitalidade e o sentido de estar conectado com os antepassados. Tomamos decisões importantes quando sonhamos. No sonho, enxergamos qual o melhor caminho a seguir. Se não conseguimos sonhar, nada acontece. Esperamos sonhar.”
A beleza desse universo imaterial pode ser mais bem compreendida na visão de Krenak sobre o maior temor dos homens brancos: a morte. Aqui, a poética visão indígena se aproxima da igualmente poética perspectiva de vida dos anarquistas, outrora hegemônicos e hoje mal compreendidos:
“Atingir o pensamento de que se pode passar por esta existência de modo mais silencioso será um grande avanço para os filhos do planeta.”
Vista dessa maneira, até a morte pode ser doce, como um pôr do sol que, embora distinto nas quatro estações, é sempre poesia e beleza.