Na noite de 13 de junho, embaixo do Viaduto 25 de Março, no coração de São Paulo, o jovem Jeferson de Souza, de 24 anos, natural de Alagoas e em situação de rua, foi rendido por dois policiais militares e executado com três tiros de fuzil — um deles na cabeça. Chorando, desarmado e sem oferecer resistência, ele foi levado para trás de uma pilastra, longe dos olhares do público. Lá, terminou morto.
A cena, cruel por si só, foi desmentida pelos próprios dispositivos de monitoramento da polícia. Os PMs alegaram que a vítima teria tentado tomar a arma de um deles. Mas as imagens das câmeras corporais contaram uma história diferente: houve uma execução sumária. Os dois policiais envolvidos no crime — o tenente Allan Wallace dos Santos Moreira, de 25 anos, e o soldado Danilo Gehrinh, de 24 — não tinham qualquer histórico anterior de mortes, agressões ou violações disciplinares.
Violência institucional
A contradição entre a versão oficial e os fatos reforça a importância das câmeras corporais, equipamento que o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) hesitou em manter no início de sua gestão. A iniciativa, considerada um marco de controle na segurança pública, sobreviveu — e agora prova ser vital para a responsabilização em casos de letalidade policial.
Mesmo sem passagens disciplinares, protagonizaram uma cena que reforça o que especialistas vêm apontando: o problema não está só nos indivíduos, mas na cultura institucional da violência legitimada.
Em 2024, a letalidade policial em São Paulo aumentou 83,8% em comparação com o ano anterior, segundo o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 649 mortes causadas por policiais em serviço, muitas delas sob suspeita de abuso de força.
Desde o início do mandato, o governador Tarcísio de Freitas vem sendo cobrado por seu discurso de “tolerância zero”, que estimula a truculência como resposta padrão. A omissão política segue como combustível de tragédias. Não houve declaração direta do governador sobre o caso. Em nota, a PM afirmou repudiar a ação e reforçou que a investigação está em curso. Mas os números e os corpos se acumulam.
Uma abordagem que virou execução: a cronologia da tragédia
As imagens das câmeras corporais desmentiram a narrativa. Jeferson, natural de Alagoas, estava desarmado, rendido e visivelmente em pânico. Chorava pouco antes de ser morto, segundo os registros. A câmera de um dos PMs foi propositalmente coberta no momento dos disparos, e a do outro nem sequer estava ativada manualmente — mas, como as câmeras têm sistema automático de gravação, os vídeos já estavam sendo enviados à central da PM.
Às 21h25, após quase uma hora sob a mira do fuzil, Jeferson foi levado atrás de uma pilastra, longe da rua e das câmeras externas, e ali recebeu os três tiros — um deles na cabeça. A gravação sem áudio mostra que um dos policiais tenta justificar a ação aos colegas que chegam depois:
“A gente estava trocando ideia… Quando ele viu que ia perder, tentou a sorte. O cara é louco. Pior que eu estava querendo liberar o cara”, completou o tenente.
Sadismo, distúrbio ou falha de comando? PM acende alerta vermelho
Para a cúpula da Polícia Militar, o caso não se enquadra no padrão das operações letais comuns da corporação, numa tentativa de desvincular mais este caso da acusação de práticas sistemáticas na corporação. Em entrevista a O Globo, Um coronel, em condição de anonimato, comparou o episódio à cena registrada em dezembro passado, em que um homem foi arremessado de uma ponte por PMs em Diadema:
“São ações que revelam sadismo puro, incompatíveis com qualquer função policial, mesmo em cenários de exceção”, declarou o oficial.
O corregedor da PM, coronel Fábio Sérgio do Amaral, assistiu pessoalmente às imagens e solicitou a prisão preventiva dos dois envolvidos. Desde julho, Moreira e Gehrinh estão detidos no Presídio Militar Romão Gomes, e responderão por homicídio doloso, falsidade ideológica e obstrução da Justiça.
Há suspeita de distúrbio mental nos agentes, embora a corporação conte com um sistema interno de saúde mental considerado robusto. O episódio evidenciaria, para os comandantes, uma falha na detecção de desvios extremos de comportamento.
Ministério Público: “motivo torpe, absoluto desprezo pela vida”
A Promotoria de Justiça foi categórica ao denunciar os PMs. Segundo o promotor Enzo de Almeida, trata-se de uma execução sumária motivada por mero sadismo:
“Agiram impelidos por motivo torpe, deliberando matar o suspeito por mero sadismo e de modo a revelar absoluto desprezo pelo ser humano e pela condição da vítima, pessoa em situação de vulnerabilidade social.”
A acusação também ressalta que o crime foi cometido com recurso que impossibilitou a defesa da vítima, já rendida e subjugada no momento dos disparos.
A defesa do tenente Moreira afirma que agiu em legítima defesa. Já os advogados de Gehrinh disseram que ainda não tiveram acesso integral aos autos e que só irão se manifestar nos trâmites do processo judicial.
Câmeras corporais: da resistência ao instrumento vital de transparência
O caso fortalece a importância das câmeras corporais nas fardas da PM. Mesmo com falhas deliberadas — como a tentativa de obstruir a lente e o atraso na ativação manual — o sistema automático de gravação foi decisivo para revelar a realidade da abordagem.
Em outras ocasiões, as câmeras já revelaram abusos parecidos, como o tiro em um jovem rendido na favela de Paraisópolis ou a execução à queima-roupa de um estudante de medicina. Esses casos só vieram à tona porque as câmeras estavam em operação — muitas vezes sem o conhecimento dos próprios policiais.
Apesar de inicialmente relutar em manter o programa, o governador Tarcísio de Freitas decidiu dar continuidade ao uso dos equipamentos. O programa é reconhecido internacionalmente como mecanismo eficaz de controle da letalidade e proteção mútua entre agentes e cidadãos. Apesar disso, também há desconfianças pela possibilidade do sistema ser burlado para mudança nos metadados das gravações, como já foi denunciado.
Pressão por justiça e memória das vítimas da violência policial
O crime contra Jeferson de Souza foi denunciado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua).
No ofício protocolado pelas vereadora Amanda Paschoal e a deputada Erika Hilton, ambas do PSOL, cobram-se responsabilização dos envolvidos e medidas preventivas contra a escalada da violência institucional, lembrando que o caso não é isolado. O texto cita o Massacre da Sé, de 2004, e registra preocupação com o avanço de “grupos justiceiros” e com a negligência estrutural do Estado diante da população em situação de rua.
A execução de Jeferson de Souza, registrada em vídeo, mostra mais do que um crime isolado. Expõe as brechas morais, psicológicas e institucionais dentro de um aparato armado do Estado, e impõe à sociedade e ao poder público a responsabilidade de reagir.