Plataformas digitais, ideologia e a produção de subjetividades

por Matheus Silveira de Souza

Plataformização do trabalho é um termo utilizado pelos pesquisadores para se referir às atividades laborais subordinadas à lógica das plataformas digitais. Ao olhar para o impacto das plataformas em nossas interações sociais e para a formação das subjetividades, talvez pudéssemos falar, também, em plataformização da sociedade.

As plataformas digitais não mudaram apenas as formas de se comunicar, mas transformaram nossa própria subjetividade. O sequestro da capacidade de atenção é um dos sintomas das redes sociais, que funcionam sob o comando da economia da atenção. Quanto mais tempo estivermos conectados na plataforma, mais dados pessoais serão extraídos e mais lucro será produzido por essas empresas, pois no jargão corporativo das bigh techs “os dados são o novo petróleo”. Se antes uma dose de dopamina era liberada ao assistirmos um filme de uma hora e meia ou lermos partes de um livro, agora vídeos de 15 segundos são o suficiente para garantirem as recompensas de dopamina. Como disse Sidarta Ribeiro: “Não é que você não consegue mais se concentrar, a questão é que tudo que você mostra para o seu cérebro tem a duração de 30 segundos”.

A convivência esporádica com meu primo, uma criança de 10 anos, me ensinou algumas coisas sobre economia da atenção. Há 4 anos atrás, eu reparei que ele passava as tardes assistindo, pela TV, vídeos no youtube, no geral de influenciadores infantis. Isso já era diferente da minha experiência na infância, pois a TV era usada para assistir desenhos. Há dois anos, percebi que os vídeos tinham sido substituídos pelos cortes do youtube e que ele passava horas assistindo cortes de 30 segundos. Esse contexto nos impõe o seguinte desafio: coloque essa criança em uma sala de aula para assistir durante 1 hora a uma explicação sobre a revolução francesa ou o evolucionismo de Darwin. Em outros termos, como manter o foco em uma explicação durante 30 minutos se as plataformas digitais lhe treinaram a absorver conteúdos, com início-meio-e-fim, que duram 30 segundos?

 Essa dinâmica não é muito diferente da interação dos adultos nas redes sociais. Os stories do Instagram, cuja duração média é de 10 segundos, está em sintonia com essa avalanche de estímulos que ocupam nossa visão e nosso cérebro e se dissipam rapidamente. Os reels, os cortes e os conteúdos do Tik Tok também seguem o mesmo circuito de excitação-frustração-excitação.

Se uma liderança política quiser se comunicar de forma eficaz com as massas, na era das redes sociais, não basta que ela faça um discurso que dialogue com as necessidades materiais da população. Ela precisará, também, que a sua fala capture o interlocutor nos primeiros quinze segundos do discurso. Caso contrário, o impulso dos indivíduos de pular para o próximo conteúdo curto falará mais alto. Algumas figuras da extrema direita brasileira, como Marçal e Nikolas Ferreira, entenderam isso muito bem. O vídeo de Nikolas sobre o pix é uma síntese desse argumento. É claro que a viralização do conteúdo ocorreu graças ao impulsionamento da big tech aliada de Trump, entretanto, o vídeo é elaborado com uma fórmula – e uma forma – que encontra eco nas dinâmicas de comunicação que estamos habituados.

O EU DIGITAL E AS REDES SOCIAIS: O PERFIL COMO UMA EMPRESA DE SI MESMO

No final da década de 1970, Foucault classificou o neoliberalismo como o espraiamento de uma racionalidade econômica que serviria de diretriz para todos os âmbitos da vida humana. Cada indivíduo deveria se enxergar como uma empresa e ser capaz de fazer investimentos em si próprio, consolidando a ideia de empreendedor de si mesmo.

Essa lógica de subjetivação é exponenciada pelas redes sociais, pois os empreendimentos são realizados em nome dos perfis das próprias pessoas e não a partir da criação de empresas nas quais são donos. Coloca-se a sua imagem pessoal como o próprio local no qual se deve investir, ou seja, cada indivíduo é uma marca apta a receber investimentos. Para Naomi Klein, as redes sociais criam a duplicação dos indivíduos, com a existência do eu digital e do eu corpóreo. Por vezes, o aprofundamento dessa sociabilidade pode fazer com que o perfil digital se sobreponha ao perfil de carne e osso. Ao mesmo tempo, a sua marca digital pode ser remodelada facilmente, a partir da exclusão de antigas postagens e da adesão de uma nova estética, impulsionada por novas publicações. A criação e gestão de uma marca pessoal se tornou um imperativo para nossa cultura e, de acordo com Klein: “muitos acreditam que a construção de uma marca pessoal é um ato de empoderamento, em que o indivíduo é agora responsável pela sua própria comoditização e colhe uma fatia significativa dos lucros”[1].

O algoritmo das plataformas acaba delimitando o nosso próprio comportamento. No Instagram, por exemplo, o indivíduo até pode postar uma paisagem ou a foto de um livro, mas seu conteúdo terá muito mais alcance caso poste uma foto pessoal e, por consequência, o sujeito terá mais likes e mais dopamina será liberada no seu cérebro. Em síntese, a escolha será entre foto de livro e pouca dopamina ou foto pessoal e muita dopamina, consolidando a primazia da imagem sobre a palavra. No Twitter, atual X, o conteúdo tem que ser projetado no formato lacração para que tenha mais alcance; uma postagem mais ponderada, avaliando os dois lados da história, pode não ter tanto sucesso. Em outros termos, as redes sociais impõem uma determinada forma a partir da qual podemos nos comunicar que, em última medida, determina o próprio conteúdo da nossa comunicação; parte central do conteúdo que produzimos está guardado na própria forma arquitetada pelos oligopólios do Vale do Silício.

Gramsci afirmou, ao analisar as relações laborais durante o fordismo, que “os novos métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver e pensar”[2]. Em síntese, não se trata de uma ideologia externa que opera na consciência dos indivíduos, mas sim, que as diferentes formas de organizar o trabalho são mecanismos concretos de subjetivação. De modo semelhante, as dinâmicas de interação social impostas pelas plataformas são formas de moldar a subjetividade dos usuários.

Neste ponto, vale lembrarmos que as plataformas digitais são empresas comandadas por meia dúzia de bilionários cada vez mais alinhados com a extrema direita. As recentes alterações da Meta, anunciadas por Zuckerberg, demonstram que essas empresas estão dispostas a servirem de partido digital para o governo Trump. Ao mesmo tempo, o alcance do vídeo de Nikolas Ferreira sobre o pix é uma prova de que as redes sociais podem ser instrumentos eficazes para desestabilizar governos progressistas na América Latina.

REDES SOCIAIS COMO PLATAFORMAS DE TRABALHO

Além de ser um imperativo cultural, a criação de um perfil nas redes sociais pode ser, também, uma necessidade de subsistência. Rosana Pinheiro-Machado, em conjunto com outras pesquisadoras, mapeou milhares de trabalhadores informais de baixa renda que dependem do Instagram para a divulgação e venda de seus serviços, como manicures, empregadas domésticas, comerciantes, entre outros[3]. Para esses indivíduos, se adequar ao formato e aos algoritmos das redes não tem relação apenas com a liberação de mais dopamina, mas está ligada à necessidade de fazer renda para sobreviver. Muitas profissões tradicionais, como advogados, engenheiros e médicos também utilizam as redes sociais para a construção de uma marca pessoal e a venda de seus serviços. De acordo com Pinheiro-Machado, essa constatação evidencia que não apenas Uber, Ifood e M Turk, mas também as mídias sociais como o Instagram devem ser observadas e analisadas como plataformas de trabalho. Assim, o mercado informal está migrando progressivamente para as redes sociais e essas plataformas estão se tornando importantes agentes da economia informal no Brasil.

Depender das redes sociais para a atuação profissional faz com que os trabalhadores tenham que se submeter às dinâmicas e regras impostas pelas plataformas, dentre as quais destacamos os seguintes elementos: I) necessidade de produção frequente de conteúdo para alcançar maior engajamento; II) adequar-se a uma linguagem e estética própria da plataforma; III) aprendizado sobre tipos de materiais que são alavancados pelo algoritmo; IV) os valores gastos para patrocinar conteúdo pela plataforma; V) tempo gasto com a preparação e produção de conteúdo, criando uma confusão sobre o que é e o que não é tempo de trabalho.

O mercado laboral nas plataformas é estruturado como um esquema de pirâmide, com alguns influenciadores no topo e milhões de indivíduos aspirando o crescimento digital. Assim, “os influenciadores no topo da pirâmide são mentores de influenciadores de médio e pequeno porte, criando uma linha de sucessão”[4], de modo que vender cursos ou mentorias se torna o principal negócio de diferentes tipos de profissionais que atuam nas redes. A contradição fundamental é que embora as plataformas preguem a plena liberdade e a chance de ficar milionário, apenas uma parcela ínfima consegue sucesso na atuação pelas plataformas, enquanto milhões de trabalhadores não ultrapassam os 5 mil seguidores e são incapazes de vender cursos ou ampliar seus rendimentos. A pesquisa coordenada por Pinheiro-Machado revelou que 87% dos influenciadores de marketing digital estão alinhados com valores da direita ou da extrema direita, o que demonstra o sucesso de ideias conservadoras nesse campo.

É preciso reconhecer que a disputa ideológica nessas plataformas é uma batalha que a esquerda começa perdendo desde o primeiro momento, pois os donos das infraestruturas digitais que definem os algoritmos e o alcance dos conteúdos são aliados da extrema direita ou legítimos representantes desse campo político. Talvez possamos substituir a estratégia de “disputar a política nas redes” pela construção de infraestruturas digitais que permitam novas formas de sociabilidade e pela estruturação de outros campos em que a luta política possa ser disputada.

Matheus Silveira de Souza é doutorando em Sociologia pela Unicamp e mestre em Direito pela USP.


[1] KLEIN, Naomi. Doppelgänger: Uma viagem através do Mundo-Espelho. Carambaia: São Paulo, 2024.

[2] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

[3] PINHEIRO-MACHADO, R.; MATHEUS, J.; ALVES-SILVA, W.; FRID, M.; PETRA, P.; PENALVA, J. Mídias sociais como plataforma de trabalho digital: avaliando os impactos sociais, culturais e políticos da migração do mercado de trabalho para o Instagram. Digital Economy and Extreme Politics, n. 1, 2024.

[4] PINHEIRO-MACHADO, R.; MATHEUS, J.; ALVES-SILVA, W.; FRID, M.; PETRA, P.; PENALVA, J. Mídias sociais como plataforma de trabalho digital: avaliando os impactos sociais, culturais e políticos da migração do mercado de trabalho para o Instagram. Digital Economy and Extreme Politics, n. 1, 2024.

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Last Update: 24/03/2025