Energia eólica ‘offshore’ nos EUA: tendências recentes e obstáculos à expansão
por Victoria Kegler
[Informe OPEU]
O setor eólico offshore nos Estados Unidos se encontra em momento inicial, marcado pela operação de apenas três instalações, o que coloca o país significativamente atrás de China, Reino Unido e outras nações europeias. Um ponto de inflexão surgiu em agosto de 2022, quando o presidente Joe Biden promulgou a Inflation Reduction Act (IRA), lei que destina quase US$ 370 bilhões de dólares em iniciativas relacionadas à transição energética, com o objetivo de possibilitar a diminuição de emissões em todos os setores da economia. Por meio de créditos fiscais, subsídios e empréstimos, a lei surgiu com o objetivo, entre outros, de reduzir os custos de energia limpa. Com isso, o governo democrata sinalizou um compromisso de revigorar o setor eólico offshore estadunidense e atingir uma capacidade de 30 gigawatts (GW) até o ano de 2030. Essa proposta legislativa refletiu uma mudança transformadora na abordagem do país em relação à energia renovável. Em 2023, a administração Biden aprovou seis projetos de energia eólica offshore em escala comercial e, pela primeira vez, leiloou áreas de arrendamento para energia eólica offshore na costa do Pacífico e do Golfo do México.
Conforme o Gráfico 1, desde 2021, é possível perceber uma queda nos preços da energia eólica offshore nos EUA, muito em virtude da transferência de tecnologia das indústrias eólica onshore e de petróleo e gás, visivelmente perceptível quando analisado o comportamento da linha em laranja, na imagem abaixo. Além da queda dos preços, a capacidade acumulada de MW aumentou exponencialmente no mesmo período, devido à onda de iniciativas instigadas pelo apoio político, demonstrado pelas barras em azul.
Gráfico 1: Aumento da capacidade acumulada em MW e queda de 75% dos preços da energia eólica offshore nos EUA, desde 2021
Fonte: Forbes.
Embora as tecnologias de energia renovável estejam se tornando mais competitivas em termos de custo, o setor eólico offshore ainda é estimulado, principalmente, por políticas públicas. Espera-se que o crédito fiscal seja o principal facilitador para o investimento, enquanto outras medidas, como leilões competitivos, que também podem fortalecer o setor. Acordos e regulamentações federais, estaduais, regionais e globais exercem uma influência significativa sobre os setores de energia renovável no país, abrangendo desde a fase de produção até a implementação dessas tecnologias. Como evidenciado na Tabela 1 abaixo, os EUA têm adotado políticas de incentivo ao setor de energia renovável.
Tabela 1: Políticas de energia eólica offshore e estrutura regulatória nos EUA
DATA POLÍTICA DETALHES | ||
2012 | Renewable Portfolio Standards (RPS) [Padrões de Portfólio de Energias Renováveis] | Define metas específicas para a parcela de eletricidade gerada a partir de fontes renováveis |
Outubro 2021 | Bipartisan Infrastructure Law [Lei de Infraestrutura Bipartidária] | US$ 30 milhões para financiar projetos de pesquisa e desenvolvimento que reduzirão os custos de projetos de energia eólica em terra e no mar para beneficiar comunidades em todo o país |
Agosto 2022 | Inflation Reduction Act (IRA) [Lei de Redução da Inflação] | Prorroga o crédito fiscal de produção (PTC) e o crédito fiscal de investimento (ITC) para energia eólica e solar até 2024. Depois disso, transiciona-se para o crédito fiscal neutro em termos de tecnologia. Permite planejamento e investimento de capital de longo prazo |
Fevereiro 2023 | DOE’s The Floating Offshore Wind Shot Summit [A Cúpula do Projeto de Energia Eólica Flutuante Offshore] | Iniciativa para reduzir o custo da energia eólica offshore flutuante em mais de 70% até 2035 |
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da Agência Internacional de Energia (IEA).
O IRA, que comemorou seu primeiro aniversário em agosto de 2023, tem impulsionado investimentos em energia limpa com uma ampla gama de incentivos fiscais. De acordo com análises divulgadas pela American Clean Power Association, 280 projetos de energia limpa foram anunciados em 44 estados do país durante o primeiro ano de implementação do referido projeto, totalizando um investimento de US$ 282 bilhões. O ano de 2023 foi notável para a indústria de energia limpa, estabelecendo um recorde na instalação de capacidade de geração, com 33,8 gigawatts (GW) instalados. Os segmentos eólico, solar e de armazenamento contribuíram com 262 GW de capacidade de geração de energia limpa doméstica, representando 77% de toda a nova capacidade de eletricidade adicionada no mesmo ano. Ao todo, sete projetos de eólica offshore foram anunciados no período, totalizando US$ 3 bilhões de investimentos.
Obstáculos econômicos: o impacto das taxas de juros e da inflação
A maior parte da expansão dos projetos de energia eólica offshore aconteceu em meio à era da flexibilização quantitativa, caracterizada pela queda das taxas de juros de referência do Federal Reserve (Fed, o Banco Central estadunidense) para menos de 1% nos EUA. No entanto, os “ventos macroeconômicos contrários” estão criando desafios para os projetos. Recentemente, a CNN descreveu os problemas da indústria como “uma tempestade perfeita de custos crescentes e infraestrutura subdesenvolvida”. A inflação aumentou os custos dos equipamentos, e as taxas de juros estão elevando os custos de financiamento de tecnologias variáveis de capital intensivo.
Esse contexto é particularmente relevante, dado o modus operandi da indústria, no qual os desenvolvedores e os órgãos estatais estabelecem contratos de longo prazo para a fixação de preços da energia produzida. O aumento das taxas de juros e da inflação nos Estados Unidos tem, no entanto, inviabilizado os preços inicialmente acordados, impondo, assim, novos desafios à viabilidade econômica desses projetos.
Os principais obstáculos enfrentados envolvem uma cadeia de suprimentos restrita, limitações na infraestrutura elétrica e prolongadas esperas na fila de conexão. Esses contratempos, requerem, frequentemente, a revisão dos contratos, em virtude das flutuações nas condições econômicas do projeto, catalisadas pelo aumento dos custos e das taxas de juros. Essa elevação não tem sido acompanhada de uma correspondente revisão nos preços de energia previamente estabelecidos, o que coloca os empreendedores em uma posição desafiadora para assegurar o financiamento necessário. Como resultado, em determinadas circunstâncias, uma parcela significativa da capacidade planejada de energia eólica offshore tem sido cancelada, ou adiada.
Embora inicialmente houvesse expectativas para a redução das taxas de juros, devido a dados favoráveis sobre a inflação nos EUA, os números mais recentes colocam em risco a possibilidade de múltiplos cortes ainda este ano. Segundo o jornal Financial Times, após meses de avanço constante em direção à meta de 2%, os dados do primeiro trimestre de 2024 revelaram um ressurgimento indesejado das pressões inflacionárias, gerando dúvidas a respeito do controle do Fed sobre a inflação e frustrando os planos de iniciar os cortes no início do verão (hemisfério norte). Consequentemente, representantes do governo estão em busca de evidências mais conclusivas antes de tomar uma decisão definitiva, apesar das projeções anteriores que indicavam três cortes ao longo deste ano.
A grande maioria dos projetos no país se encontra em fase de viabilidade, ou em estágios preliminares, com alguns progredindo para a etapa de Engenharia, Aquisição e Construção (EPC, na sigla em inglês). É relevante salientar, porém, que a maior parte desses empreendimentos ainda não obteve a Decisão de Investimento Final (FID, na sigla em inglês), considerada a fase determinante em um programa de energia de capital intensivo. Nessa etapa, os investidores fazem uma análise detalhada dos fatores de risco e das considerações financeiras para garantir que os projetos possam ser implementados de forma eficiente e sustentável, minimizando a possibilidade de prejuízos. Entretanto, como citado anteriormente, os desafios enfrentados pela indústria têm dificultado a concretização das decisões de investimento em diversos projetos, resultando no cancelamento de iniciativas. No fim de 2023, a Ørsted, uma das maiores desenvolvedoras do setor, optou por interromper o avanço dos empreendimentos Ocean Wind 1 e 2, uma decisão motivada pelo aumento das taxas de juros.
No total, os projetos que foram cancelados até o fim de 2023 deveriam somar mais de 12 gigawatts de potência, representando mais da metade da capacidade programada no pipeline, particularmente impactados pelos custos elevados de capital, inflação, restrições na cadeia de suprimentos e incerteza quanto à qualificação para créditos fiscais, entre outros fatores identificados por um recente estudo divulgado pelo Business Council For Sustainable Energy como principais ameaças à sua viabilidade econômica. Atrasos nessas ações ameaçam os investimentos na cadeia de suprimentos, que são cruciais para o crescimento a longo prazo — o IRA oferece incentivos fiscais para investimentos em energia eólica offshore, mas os fornecedores necessitam de um longo fluxo de projetos para comprometer os fundos. Por exemplo, a GE Vernova e sua subsidiária LM Wind Power se comprometeram a construir fábricas no estado de Nova York, mas apenas se o grupo “conseguir um volume suficiente de pedidos dos clientes”.
Apesar do cenário desafiador, alguns estados prosseguem com investimentos na implementação de energia eólica offshore para assegurar o fornecimento de energia, com Nova York se destacando nesse contexto. Em 2023, o estado concedeu provisoriamente 4 GW de contratos a licitantes, marcando a maior aquisição desse tipo de energia nos Estados Unidos até o momento. Em julho de 2024, a governadora Kathy Hochul anunciou o início da construção da maior fazenda eólica offshore do estado e aproveitou a cerimônia de lançamento para inaugurar oficialmente o quinto edital de energia eólica do estado. De acordo com a NYSERDA, Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento de Energia do Estado de Nova York, o edital inclui disposições como indexação à inflação, cláusulas trabalhistas, requisitos de envolvimento de partes interessadas e compromissos com comunidades desfavorecidas, representando uma oportunidade para retomar vários projetos que haviam sido cancelados após a decisão de anular o edital da terceira rodada. Além disso, Nova York tem se empenhado na relicitação de projetos previamente suspensos, aceitando propostas com valores superiores. Essa abordagem implica um custo inicial mais elevado para a eletricidade gerada por fontes eólicas, questão que ainda não foi abordada no debate político atual.
Para além, os estados de Nova Jersey, Massachusetts, Rhode Island e Connecticut também planejam expandir sua capacidade de energia eólica offshore em 2024. Em março, foi oficialmente inaugurada a primeira fazenda eólica offshore em escala comercial dos EUA, um marco significativo que estabelece as bases para o desenvolvimento de uma série de grandes projetos eólicos subsequentes. Paralelamente, os estados da Costa Leste aceleraram os leilões de energia eólica offshore ao longo deste ano, com o intuito de restaurar a confiança dos investidores e garantir um fluxo contínuo de projetos indispensáveis para o avanço do setor.
Mapa da Costa Leste dos EUA (Crédito: Maps of World)
Nesse contexto recente, um novo mecanismo tem sido implementado: alguns estados planejam alocar novos contratos de energia eólica offshore sob outros mecanismos de preços que aumentam o valor da energia, caso a inflação suba, de modo a evitar o cancelamento de contratos conforme visto no ano passado após a elevação de custos. O presidente da gigante dinamarquesa de energia Ørsted A/S, Mads Nipper, diz que os EUA ainda são um lugar atraente para construir novas fazendas eólicas offshore, mesmo depois de os choques inflacionários terem devastado o setor no último ano. “Quando os estados dos EUA optam por oferecer proteção contra a inflação, isso aumenta a atratividade”, afirmou Nipper, em uma entrevista recente.
É uma abordagem diferente, após os picos de inflação da era da pandemia e as interrupções na cadeia de suprimentos que abalaram a indústria, pois tornaram muitos projetos de energia eólica offshore dos EUA não lucrativos. O diretor da New York Offshore Wind Alliance, Fred Zalcman, disse esperar que outros estados da Costa Leste sigam o exemplo. “Os contratos de Nova York também incluem um mecanismo de compartilhamento de custos de interconexão, no qual os desenvolvedores pagam uma parte ‘simétrica’ dos custos de transmissão”, observou Zalcman.
Obstáculos políticos: interesses fósseis e a campanha de desinformação
Além das questões econômicas, um novo desafio significativo para o setor é a questão ambiental. Não é novidade que a indústria do petróleo tem se empenhado na disseminação de informações falsas para intervir no avanço e na transição energética. Nesse cenário, a energia eólica offshore tem sido alvo de críticas intensas e de campanhas de desinformação desde 2019. Uma série de mortes de baleias registradas em Nova York e Nova Jersey desde 2023 tem sido indevidamente associada à instalação de turbinas eólicas offshore, apesar da ausência de evidências científicas que corroborem tal ligação e da existência de pesquisas recentes que demonstram que a população apoia a energia eólica offshore. Muitos políticos republicanos e grupos conservadores imediatamente atribuíram as mortes desses animais aos projetos — no entanto, as evidências indicam que o aumento das colisões com embarcações e o emaranhamento com equipamentos de pesca são as causas mais prováveis.
Examinando mais a fundo, um estudo recente conduzido por estudantes da Universidade de Brown expôs que organizações associadas ao setor de petróleo e gás têm estabelecido parcerias com think tanks e projetos comunitários na Costa Leste, uma região onde a presença da indústria eólica offshore é particularmente significativa. Essa colaboração é sustentada por doações que ultrapassam US$ 72 milhões desde 2017, com o objetivo explícito de obstruir a implementação de projetos de energia eólica offshore.
Tal desinformação pode comprometer o apoio público e retardar o avanço dos projetos de energia eólica, criando um ambiente adverso para seu desenvolvimento. Essa estratégia de desinformação é exemplificada pelas declarações do candidato republicano e ex-presidente Donald Trump, que tem criticado as fazendas eólicas offshore em seus discursos políticos. Em um comício realizado em Wisconsin, em abril de 2024, Trump se referiu à energia eólica como “muito cara” e “a energia mais cara”. Durante um evento em dezembro de 2023, ele já havia descrito as turbinas eólicas como um “cemitério de pássaros” e afirmado que seriam responsáveis pela morte das baleias. Essas declarações contribuem para o clima de desinformação e podem influenciar negativamente a percepção pública sobre os benefícios e a viabilidade dos projetos eólicos offshore.
Perspectivas futuras e considerações
De acordo com especialistas, a energia eólica offshore se encontra em uma situação muito mais estável do que no ano passado, embora ainda enfrente desafios econômicos e políticos semelhantes. A possível volta de Trump poderia impactar significativamente a agenda climática e as energias alternativas, especialmente as tecnologias menos maduras, como o hidrogênio e a captura de carbono, em estágios mais vulneráveis. Embora a ameaça de Trump de reverter a IRA dependa do apoio do Congresso e muitos projetos apoiados pela lei beneficiem distritos republicanos, é provável que ocorram alguns transtornos por meio de ações executivas direcionadas e por omissão burocrática.
Em pelo menos três tentativas da Câmara dos Representantes dos EUA, que está sob controle republicano, de revogar partes da política até agora, os principais alvos têm sido a geração de eletricidade limpa e os incentivos para investimentos em energia renovável de grande escala, além dos créditos para veículos elétricos. Contudo, essas propostas de lei não avançaram no Senado, e a revisão legislativa pode se tornar mais complexa, à medida que novos projetos asseguram financiamento.
Especialistas destacam que a revogação total da IRA é vista como improvável, especialmente após a conclusão das várias políticas, algo que a administração Biden tem se esforçado para alcançar. “Historicamente, é uma regra não oficial que as administrações não modificam orientações sobre políticas fiscais”, observou Jeff Navin, ex-funcionário do Departamento de Energia dos EUA, uma vez que tais orientações são a base para as decisões de investimento. Isso é um dos motivos pelos quais o Departamento do Tesouro está acelerando a implementação das políticas. Uma vez estabelecidas, torna-se significativamente mais difícil fazer alterações. Em um cenário de vitória eleitoral republicana, o mais provável é que esses tentem eliminar e diminuir as políticas aos poucos, ao longo dos anos.
Ali Zaidi (Fonte: Casa Branca)
A resistência da energia eólica offshore aos desafios políticos aumentou, conforme destacado por autoridades climáticas de alto escalão na Casa Branca, por CEOs do setor e por analistas industriais. Eles argumentam que o progresso substancial já alcançado torna improvável que uma potencial segunda administração Trump consiga desfazer totalmente os avanços conquistados até agora. Apesar disso, Ali Zaidi, membro do Conselho Nacional de Clima da Casa Branca, ressaltou em entrevista à rede CNN a necessidade de um governo favorável para a indústria amadurecer e prosperar plenamente. Zaidi enfatizou que os investimentos já realizados, simbolizados pelas estruturas físicas no terreno, são permanentes e irreversíveis. Ele observou, porém, que, para converter o sucesso inicial em um crescimento sustentado, é fundamental uma colaboração robusta entre os governos federal e estaduais e o setor privado, por meio de políticas de apoio contínuas e de um ambiente regulatório estável. Nesse sentido, uma possível eleição de Trump, que expressou publicamente seu descontentamento com o setor, poderia impactar negativamente o crescimento da energia eólica offshore e retardar o ímpeto global da indústria.
Victoria Kegler é graduanda de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pesquisadora pelo INCT-INEU no OPEU cobrindo a área de Energia, Meio Ambiente e Clima. Contato: [email protected].
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: [email protected]. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 10 jun. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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