Os 30 anos do Plano Real, completados nesta segunda-feira (1), inspiram uma discussão sobre as consequências dessa política econômica para além do discurso neoliberal da mídia corporativa, limitado a festejar a importante conquista que foi a derrubada da hiperinflação. Afinal, todos os remédios, por mais eficazes que sejam, podem provocar efeitos colaterais. E com o Real não foi diferente.
Artigos e postagens nas redes sociais, por exemplo, afirmam que estabilização dos preços trouxe alívio para a população, mas que o objetivo maior do Plano Real foi alinhar o país com os princípios do chamado “Consenso de Washington”, inseri-lo na globalização financeira e comercial, atendendo a interesses externos e das elites econômicas do país. Um modelo totalmente na contramão dos princípios da Constituição cidadã de 1988.
O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, afirma que o Plano Real teve sucesso em acabar com a alta inflação, diminuindo o grau de indexação da economia brasileira.
Juros altos, um dos efeitos colaterais
Mercadante lembra que, na preparação do Real, o governo renegociou a dívida externa velha, abriu a conta de capitais e elevou brutalmente o juro real, para evitar fuga de capitais domésticos e atrair capital de curto prazo, o que viabilizou a transição da URV para o Real.
“A valorização inicial do câmbio foi essencial para a rápida redução da inflação, mas trouxe um alto custo: o início da era de elevados juros reais. De 1994 a 1999, a taxa básica média de juro real foi de 22% ao ano”, pontua o presidente do BNDES, sobre um dos principais entraves ao desenvolvimento do país, persistente até os dias de hoje.
Mercadante lembra que, para atrair recursos externos e promover o ajuste fiscal, o governo de então, liderado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, liquidou ativos estatais por preços reduzidos, sem o planejamento de uma política industrial e sem avaliação estratégica dos desdobramentos.
De olho nas urnas
O economista afirma também que o lançamento e os efeitos do Plano Real sobre a inflação foram importante trunfo para a reeleição de FHC.
“Depois de 30 anos, a história mostra que o Plano Real teve êxito ao reduzir a inflação, mas não em garantir a estabilidade macroeconômica e a retomada do crescimento. Para reeleger FHC, a âncora cambial foi prorrogada, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, empurrando o país para grave crise cambial, econômica e social”, diz o presidente do BNDES.
“Do lado financeiro, o déficit em transações correntes aumentou de 2,5% do PIB, em 1995, para 4,5% do PIB, em 1999. Do lado social, o arrocho monetário e fiscal produziu alta no desemprego, de 4,6%, em 1995, para 7,6%, entre 1995 e 1999”, sublinha Mercadante.
Ele lembra também que o governo FHC expôs o país a um ataque especulativo decorrente do desequilíbrio das contas externas, recorreu ao FMI e se submeteu ao “Consenso de Washington”.
“Mesmo assim, não evitou nova crise cambial e novo pedido de ajuda ao FMI (2002), selando o destino dos governos do PSDB, que não venceram mais eleições presidenciais e amargaram uma crise partidária, agravada pelo apoio ao golpe de 2016 e pela adesão de lideranças ao bolsonarismo”, ressalta Mercadante.
Lula e a estabilização
O presidente do BNDES lembra ainda que “a estabilização do Plano Real só se completou no governo Lula, quando o país quitou a dívida com o FMI e começou a acumular reservas internacionais, que até hoje nos dão autonomia de política econômica”.
Já pelo lado fiscal, observa o economista, a estabilização está incompleta, pois “esgotaram-se as estratégias de queima de patrimônio público e de metas de resultado primário ambiciosas, que geraram uma política fiscal pró-cíclica que aprofundou as flutuações da economia”.
Mercadante acrescenta que, ao analisar o Plano Real, o PT reconheceu o mérito da desindexação da economia, mas denunciou a manutenção da âncora cambial, com a apreciação do câmbio e a deterioração das contas externas, e o elevado custo econômico e social, que precarizou a vida da população – um cenário que tem sido revertido pelas políticas públicas do governo Lula.
O presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Marcio Pochmann, ressalta que os 30 anos do Plano Real têm sido notabilizados exclusivamente pela versão neoliberal na mídia comercial, “sem sequer ocasionar constrangimentos, pois laudatória e acrítica, própria do pensamento único dominante no Brasil contemporâneo”.
Pochmann lembra que o lado neoliberal foi o grande vencedor da disputa travada no interior do governo Itamar Franco entre os anos de 1992 e 1994. “Mesmo sabendo que a história contada não contempla, em geral, a versão dos derrotados, cabe insistir no registro de que houve um outro lado, o social-democrata em disputa para além da estabilização monetária, a soberania do desenvolvimento econômico nacional”, escreve o presidente do IBGE.
Pedro Rossi, economista e professor da Unicamp, afirma que não houve milagre algum com o lançamento do Plano Real, já que vários países latino-americanos estabilizaram no mesmo período histórico, em razão da disponibilidade de divisas externas.
“A verdade é que o plano real falharia se fosse aplicado em meados dos 1980, pois a estabilização dependia de divisas estrangeiras para sustentar a âncora cambial”, afirma o economista, em post na plataforma X.
“A estabilização da inflação teve um alto custo. Os juros estratosféricos implicaram em um alto custo fiscal e moldou uma economia rentista. O câmbio excessivamente valorizado transformou a estrutura produtiva e desindustrializou o país”, pontua Rossi, lembrando que o governo ignorou alertas sobre o desequilíbrio externo e o aumento do passivo externo.
“Havia uma crença furada no ‘crescimento com poupança externa’ como se a melhora de produtividade viesse automaticamente da entrada de capitais externos. Dívida pública aumenta e se dolariza”, acrescenta.
Segundo o professor da Unicamp, “as comemorações efusivas dos 30 anos do Plano Real, no fundo, escondem a defesa do Projeto neoliberal”.